Délivrance

picture (12)Houve duas tentações. Ou rendições. A primeira, a de querer desculpar-me com o eventual leitor. Seria, no entanto, contradição diante da outra, a tentação alternativa. Como se desculpa da própria dor? E como explicar esse cansaço todo, cansaço de abandono, de morte e de paz, talvez de algum cemitério pessoal? Desisti. Com alguma experiência do espetáculo, sei não haver desculpas para o ator. Ousando estar no palco, engole as vaias ou degusta o aplauso do espectador. Cada dia é um dia. Cada noite é uma noite. A dor do palhaço não importa. O show tem que continuar. O distinto público sempre tem razão.

Jornal tem muito – ou quase tudo – de um palco. Na verdade, é teatro de variedades onde a vida se desenrola: amor e ódio, belezas e feiúras, nascimentos e mortes, certezas e dúvidas, o sério e o frívolo. Se não se pode dizer seja o grande teatro da vida, há uma certeza: é, o jornal, o registro inicial dela, em toda a absurdidade do homem e do mundo. A variedade é tal que acontece, na mesma edição, de a colunista social detalhar festas regadas a champanha, o repórter policial escrever sobre o crime hediondo, uma entrevista permitir a mentira do político e a secção de falecimentos registrar os que se despediram. Da morte à vida, da festa ao luto, qual outro teatro tem variedades tantas?

Há algum tempo, um amigo querido dizia, a uma platéia pequena e curiosa, que jornal é um rascunho da história. São, pois, rabiscos de cada dia, anotações. E o cronista é um dos contadores desse cotidiano. Pois bem. Outros amigos, num canto onde nos recolhemos, disseram-me do que eu já sabia: “Você está escrevendo de forma tensa, parece que com o coração na boca..” Estou. Sei disso. Tanto sei que – desculpando-me com o eventual leitor – pensei em pedir o que, em véspera de parto, mulheres grávidas pedem como direito: licença à gestante. Pois estou em trabalho de parto.

Mais elegantes, franceses dão, ao parto, o nome de “délivrance”. Explica o ato de parir mas tem, também, o significado de libertação, de entrega e de redenção. Mulher, em véspera de dar à luz, sabe do que estou dizendo. Entende. Entregar o filho à vida é, ao mesmo tempo, libertá-lo do corpo e redimir-se nele. E, então, nada mais do mundo existe. Todo o resto fica em suspenso. O palco desaparece, as cortinas descem, o distinto público desculpe, mas o show não pode continuar. Há alguém nascendo.

Concordei com o meu amigo: estou inquieto, tenso. Mas estou parindo, minha “délivrance”. Escritores, músicos, pintores, artistas parem. Esse meu filho literário, já indo-se de mim, plantou-se-me no útero da alma faz alguns meses, num jantar com o tão saudoso Francarlos Reis, numa cantina italiana de São Paulo. Eu lhe prometi uma peça de teatro, algo que apenas ele poderia dirigir e representar. Ele morreu, a morte que ainda dói na alma. O filho pareceu ter-me morrido no ventre da criação literária. Fingi querer abortá-lo, não consegui. Pois ele estava tão enraizado em mim, era tão meu que se tornou eu mesmo.

Eu não o queria. E, ao mesmo tempo, eu o quis. Então, gestei-o devagarinho, gerei-o com lentidão. Esculpi-o. Não percebi estar quase pronto para nascer. Eu o queria só para mim. Que me ficasse grudado na carne da alma. Ele, porém, continuou a latejar, querendo libertar-se. Acho que tenho errado em não deixar o palco, afastando-me deste cantinho para – em sossego e recolhido – parir a peça em paz, pois é como ela me roubasse olhos de ver outras coisas.

Antes da peça dramatúrgica, o romance “Miserere mei, amor” parecia ter-me consumido a alma. Ela estava nele. A angústia é a de saber que, viva em outra criação, a alma quer partir novamente. E eu vejo cada página, chegando ao fim, como quem lambe a cria. É conflituoso: detesto a obra por tantos dilaceramentos, por saber que não mais está vivo aquele que a inspirou, para quem a escrevi, quem haveria de interpretá-la, num monólogo que pretendia pudesse, o falecido, esbanjar todos os seus talentos de ator, de dançarino, de pianista, sua face trágica e cômica. Quase ao fim, hesito em concluir, entre o receio de dá-la à luz e o de entrar no vazio. É a “délivrance”, outra. Mulher entende. Bom dia.

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