Derrota: cadeado no portão
O texto foi publicado no dia 20 de abril de 1982 em O Diário e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014
Acabrunho-me quando me julgam um homem de coragem. Não é verdade. Desconheço, sim, o medo, mas isso tanto pode ser uma prova de valentia quanto definição de insanidade. E o meu medo está justamente no medo em ter medo ou no medo de ter medo. Duas formas, portanto, aparentemente antagônicas mas iguais em sua natureza. Ora, muitas vezes o herói não é um covarde que entrou em desespero? Por que, então, não pode a valentia ser vista apenas como o último recurso de quem age em legítima defesa?
Não, não sou homem de coragem, mas alguém com imensas e profundas limitações, vulnerável e frágil. Um homem que, muitas vezes, se abate e se deixa prostrar, que cai quando atingido no seu núcleo vital, tão pequenino mas tão sensível. O que alguns pensam ser coragem nada mais é que indignação, legítima defesa, inconformação. Pois o mundo – com o que sonho desde a infância – é maravilhoso demais para não se realizar em toda a sua plenitude. Não é um mundo utópico, mas real e palpável, pois ele existe dentro de mim. Sinto-o dentro de minhas entranhas e nos movimentos da alma. É um mundo de paz, de profunda e imensa paz, de serenidade, de amor, de sutilezas enriquecedoras, de delicadezas que alimentam e vivificam.
Não, não sou guerreiro. Apenas fiz-me um deles, n o ada mais que isso. Na verdade, transformei-me em um homem em permanente estado de desespero, que vê os anos correndo e que, rápida e aceleradamente, presencia a deterioração de um mundo bom e de uma vida feliz. Daí o desespero, a indignação. Pois está acima de minhas forças – de forma insuportável e incontrolável – desejar apenas para mim o universo pacífico e aconchegante que, com minha mulher, construí um lar, junto aos que amamos. Tem os seus percalços, mas é tão aconchegante e morno, tão sereno e plenificante que não consigo tê-lo apenas para mim. Devo tentar fazê-lo transbordar, acreditando ser prova concreta de podermos sermos todos felizes, fraternos, pacíficos e bons.
Luto, portanto, não por ser corajoso, mas por acreditar. E por sonhar sim, em transformar – dando-nos todos as mãos – à desordem que aí está. Fiz-me guerreiro por tentar impedir que meu mundo privado e íntimo seja invadido por vendavais destruidores que chegam de fora. Não há coragem nisso ou para isso, mas apenas indignação e legítima defesa. E inconformação, doída inconformação. Pois a maior derrota que conheci foi a de ver-me obrigado, agora, a colocar um cadeado no portão da minha casa. Assim, não é possível viver. Eu, pelo menos, não o consigo. Bom dia.