Derrubando muros

O simbolismo das coisas parece mágico e, no entanto, quase sempre, é apenas medroso. A idéia de muro, por exemplo. Para quase todas as pessoas e em todos os tempos, muro é proteção. A história nos conta que foi a mulher, para proteger os filhinhos, que teve a idéia de cercar o terreno onde fazia coleta enquanto aguardava o homem retornar da caça.

Muros são proteção mas, também e ao mesmo tempo, exclusão. Os protegidos excluem-se. Religiões e seitas, filosofias e crenças falam em muros: protetores, de lamentação, muros familiares, muros de Jericó, frágeis e inúteis muros quando ocorrem brechas nos tijolos das fortalezas. Como proteção, o muro é de tal importância que demoli-lo significaria a derrota do homem ou a sua perda de poder. Sem muros, pois, as pessoas não vivem. E, no entanto, a vida não tem muros.

Penso nisso por alguém me dizer que – tal como nas letras de uma bela música – gostaria de morar num lugar de quintais sem muros. Não adianta. Quintais sem muros, cidades sem muros, países e nações sem muros existem e sobrevivem apenas se forem dirigidos por crianças. São elas, as crianças, que vivem de audácias, de coragem diante do desconhecido e da confiança umas nas outras. Adultos, juntando bens sem conta, precisam de tanta proteção que se tornam incapazes de viver em lugares sem muros, mesmo naqueles já projetados para não tê-los. Onde não há muros, inventam-se grades. E se se derrubam muros – como se derrubou o Muro de Berlim ou a muralha que Churchill denominou de “Cortina de Ferro” – não há diferença. A prisão está por dentro. No coração.

Os que moram em lugar sem muros sabem das muralhas psicológicas que bloqueiam convivências. Também acreditei em quintais sem muros. Mas me esqueci de que a criança tinha morrido. Não ter muros foi um sonho de criança em cabeça adulta. Ou saudade. Pois, como crianças, Guto Souza Campos e eu – em nossos seis, sete anos de idade – éramos tão amigos, tanto amigos éramos que fazíamos brechas em todos os muros que separassem as nossas casas. Éramos donos do mundo, herdeiros do paraíso. Nenhum adulto tolo tinha, pois, o direito de colocar barreiras num reino infantil que não tinha barreiras. O mundo tinha o tamanho daqueles quintais. E era todo nosso.

Crianças iraquianas e estadunidenses são capazes de derrubar muros. Mas governantes de Iraque e Estados Unidos, não. Eles explodem muros. Crianças israelenses e palestinas são, também, capazes de quebrar muros para brincar juntas. Os políticos, não. Adultos não sabem nada. Pior do que isso: são medrosos, vivem acovardadamente. Adultos criaram muros demais: muros do direito, proibindo e autorizando; muros de religiões, condenando e absolvendo; muros políticos, de interesses em conflitos; muros econômicos, definindo riquezas e misérias.

Antes de enlouquecer, é preciso ser honesto de maneira absurda. E ter a coragem de repetir o que o coração fala. Pois ele fala de verdades de criança, de amizades e não de amores, de lealdades e não de fidelidades. Quem teve, na infância, um amigo não consegue mais entender o mundo sem a dimensão da amizade. Não adianta ter amores, grandes paixões, não adianta falar em marido e mulher, em amantes ou namorados. Amigo é amigo, o tesouro. Descobri esse vazio quando Guto morreu. O amigo que se vai é pedaço da vida que se perde. Amor, vive-se outro; marido e mulher, trocam-se. Mas o amigo da infância – com quem se reparte o lanche, ao lado de quem não se temem precipícios – esse, quando se perde, é a vida que se apequena.

Há muros para quebrar. Não sei como fazê-lo. Talvez, se reencontrássemos amigos de infância, pudéssemos começar tudo de novo. Com corações de crianças. Bom dia.

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