Deserdado

picture (6)Não vou mais quase a lugar algum. E, quando vou, costumo sair à sorrelfa. Eis aí expressão antiga, que cheira a cáspite. Haveria, ainda, quem saia à sorrelfa, ou à francesa, aquele sair de fininho? Quando, pois, estou nos raros lugares onde nem sei porque fui, faço como antigamente: escafedo, escafedo-me. Porque, saindo à sorrelfa ou à francesa, as pessoas escafediam, escafediam-se. Era mais interessante.

A última vez que saí à sorrelfa foi durante a palestra de um famoso acadêmico. Escafedi-me de mansinho. E um jovem me olhou reprovando-me. Quase lhe expliquei, mas desisti. Saí porque não quero aprender mais nada. O meu, já há alguns anos, passou a ser tempo de desaprender o pouco que aprendi, pois me parece ter aprendido quase tudo errado.

É tolice querer ser isso ou aquilo, ter ou aceitar rótulas. Ao contrário, teria que ser acelerada a busca para zerar a razão. É a descoberta que fiz, como escrevi já há tempos, de ter-me transformado num “EX” na vida: ex-ateu e ex-cristão, ex-empresário, ex-aluno, ex-advogado, ex-professor, ex-marido, ex-comunista, ex-democrata – vou, cada vez mais, deixando de ser. Tento, agora, tornar-me ex-corintiano. Se acontecer, terei retornado ao ponto zero.

Depois da consciência de ser EX, passei a atentar para o prefixo “DES” em minha vida. O trabalho é duplo: colocá-lo onde não estava; tirá-lo de onde ficou por muito tempo. Onde des-amei, preciso amar. E des-construir o muito construído de maneira errada. E reconstruir quase tudo do que des-construí. Hei que des-aprender a maioria das coisas que aprendi. E, pelo menos, retomar outras importantes que, tendo aprendido, des-aprendi. Apressei-me e exigi pressa demais. Agora, é momento de des-apressar e de des-apressar-me. Enjoei. Cansei. Logo, preciso des-enjoar e des-cansar. Tive bandeiras demais, espadas em excesso. Preciso des-embandeirar a vida e colocar as espadas na bainha, embainhá-las. Ora, se viver não precisa de motivos, tenho que me des-motivar, deixando de buscar motivos. E renunciar a afogos e a des-assossegos, substituindo-os por antônimos : des-afogos e alguma forma de sossego. Preciso des-adaptar-me ao mundo para, então, ter a oportunidade de tornar reais uns poucos dos tantos sonhos vividos com os olhos abertos.

Por isso, não há que aprender coisas. Elas complicam o mundo e eu quero um mundo des-complicado. Elas organizam e ordenam demais a vida e eu preciso de uma vida mais des-organizada e des-ordenada. O que eu ensinei devo des-ensinar. E quem me des-ensinou as belezas de emoções e sentimentos, deveria ensinar-me a vê-los e a senti-los outra vez. Pois preciso des-crer de muito do que cri para, então, voltar a crer no que descri. Des-crer de crenças e crer em des-crenças.

Se me armei, preciso des-armar-me. Se mergulhei em trevas, tenho que des-entrevar-me. Se vivi superficialidades de sentimentos, é hora de des-entranhar-me, arrancando-os das entranhas. Tenho que des-ensurdecer, passando a ouvir. Preciso des-enlutar, esse luto diante da perda de tantas belezas; matar a desilusão para voltar a iludir-me, des-enlouquecer dessa tristeza toda, des-entristecer. Des-poetizaram-me o mundo, preciso poetizá-lo. Des-pintaram-no. Tenho que ajudar a pintá-lo com cores vivas,conforme as enxergam os olhos do coração.

Na verdade, preciso apenas viver o encanto em meio a tanto des-encanto. E a esperança, diante de toda essa des-esperança. Entendi, enfim, que fui, sim, des-erdado do paraíso. Quero, apenas, a minha herança de volta. Bom dia.

Deixe uma resposta