Desfiles cívicos

picture (15)Há quem reclame de escolares serem obrigados a desfilar pelas ruas em comemoração ao “7 de Setembro”. Esquivo-me a opinar, pois sou dos que aplaudem todo e qualquer esforço para que se retomem os chamados orgulho e brios cívicos. Estavam adormecidos. Desde o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, do governo Médici, esforços pelo civismo como que foram banidos não apenas das escolas, mas da alma coletiva.

Não cultuar a pátria é matricídio, parricídio. Desestimular o respeito à bandeira e ao hino nacionais, aos valores corresponde a pregar o desamor aos pais, à família. E não há argumento – mesmo os mais falsos e marcados por vernizes ideológicos – que justifique o desprezo aos valores nacionais. E que ninguém alegue tratar-se de “coisa de subdesenvolvido”, pois os Estados Unidos – que tanto lixo cultural espalham pelo mundo – e a França, apenas para citarmos dois países, dão testemunhos diários, permanentes, de civismo e patriotismo. As comemorações da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa emocionam pela espontaneidade e fervor verdadeiramente religioso daqueles povos.

No Brasil, houve essa febre cívica, herança que minha geração recebeu de Getúlio Vargas, esse mesmo Getúlio que vem sendo humilhado desde que os tucanos bateram asas em direção ao deus mercado. Civismo é semente que se planta para ficar. Qualquer criança sabia cantar emocionadamente o Hino Nacional, nem que não entendesse as letras. E com a postura de quem o levava no coração. Na França, volto a lembrar, Charles De Gaulle – quando ouvia a “Marselhesa” – voltava os olhos para sua mulher, Yvonne, e dizia: “Querida, a nossa música…” Os socialistas ainda hoje comovem-se e arrepiam-se ao som da “Internacional”.

Essa responsabilidade cívica era tão séria que, muitas vezes, chegava ao absurdo. Tornou-se-me inesquecível um “7 de Setembro” de minha infância que, literalmente, foi marcado a sangue. À véspera de qualquer feriado, em fins-de-semana, íamos ao sítio dos saudosos Dácio e Nenê de Souza Campos. Guto, amigo querido que morreu tão cedo, era como irmão meu. E Quico, irmão caçula. Estávamos no sítio, deveríamos retornar à cidade para o desfile, quando eu pisei numa armadilha sei lá se de raposa, para prender qual bicho. Os dentes da arma atravessaram-me a perna, o sangue jorrou, fui – por estradas de terra, num calhambeque antigo – levado à Santa Casa às pressas e empurrado pelo medo das pessoas. Eu teria meus 10 anos, nada mais do que isso. Acabara-se, para mim, a participação no desfile de “7 de Setembro”, as fanfarras, as bandeiras, a marcha pela cidade.

Mas, para os padres salesianos, o “meu” desfile continuou. De nada adiantou minha perna enfaixada, nem mesmo as pessoas estarem carregando-me. O padre-conselheiro, frio e rígido, manteve a decisão inflexível: “Está suspenso por três dias.” Havia atestado médico, minha perna era a prova visível, concreta, viva. Mas o general – aliás, o padre – manteve a sentença com uma alegação de caserna: “Ele sabia que ia haver desfile. Portanto, o dever dele era cuidar-se, resguardar-se.” E, antes que alguém mais afoito queira xingar os militares pós-1964, lembro que meu “7 de Setembro” de sangue e de lágrimas aconteceu em 1950… Fiquei à janela de minha casa vendo a banda passar. E com raiva na alma. Do padre. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins)

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