Despoliciamento e novos bárbaros

Formou-se, então, um grupo de trabalho com cinco jovens jornalistas. O mais velho tem 29 anos. Escolheram-me para estar com e junto a eles. Fiquei assustado, entre feliz e temeroso. Feliz pela confiança, temeroso por ficar num grupo de jovens inteligentes, lúcidos, atualizados às novas tecnologias. Para ser franco: senti-me feito cacique ou pajé de tribo. E começou a funcionar.

Inteligente fosse eu, já teria mandado os tempos, costumes e o mundo atual às favas. Mas não consigo. Há algo, dentro do peito, que treme à mínima barbárie. Fico inquieto, angustio-me, agonio-me, sabendo que, mesmo indiretamente, tudo me atinge. E atinge um mundo de que fiz parte, todo cheio de esperanças, de alegrias, de otimismo. Então, reajo, mesmo sabendo da inutilidade de um gesto, de uma atitude ou de um grito. Até aquela história do incêndio na mata, em que o passarinho, de bicada em bicada, levava água para apagar o fogo já não serve mais: “cumpri a minha parte.” Mas de que adianta? O incêndio vai devorando tudo, queimando, destruindo, criando campos de cinzas.

De qualquer maneira, insisto em ficar à margem da estrada. E vejo a manada passar, indo e vindo por caminhos que já conheço. Lá à frente, nesse atropelo suicida, os bois enlouquecidos encontrarão o abismo, um túnel sem saída, obstáculos intransponíveis. E, então, retornarão. De meu canto de estrada, sob a árvore, vejo o retorno de homens cansados, decepcionados, desiludidos, sem forças. E espero novas manadas, na expectativa de alguém perguntar o que há ao meio ou ao fim daqueles caminhos. Ninguém pergunta. A experiência e a vivênvia dos mais velhos não servem para nada. Nem para eles mesmos. Pois não irão repetir, para si, tolices cometidas aos 20, 30 anos. Nem forças terão para fazê-lo.

Com esses jovens, percebo curiosidades, vontade de conhecer. Então, um deles, o de 29 anos, se queixou de não ter sido preparado – nem pelos pais, nem pelas escolas – para a vida e o mundo. “Foi liberdade demais. Ninguém me disse não.” Uma revista semanal tratou disso ainda recentemente. A minha geração, juventude dos 1950/60, lutou pela liberdade plena, pelo rompimento de todas as regras e inventou o “é proibido proibir”. Não avaliamos o terrível mal que estávamos desencadeando. Lutamos por uma liberdade irresponsável. E vencemos. Os destroços, não sei ainda quem irá catá-los.

Sentado à margem da estrada, vejo – e, agora, ouço daqueles e com aqueles jovens – a tristeza dos tempos despoliciados. Fui claro e objetivo com os moços, na expectativa, porém, de uma reação negativa: “Vocês terão plena liberdade para fazer, criar, mas com responsabilidade em paralelo. E eu vou cobrar.” Um deles, abriu-se em sorrisos, como se tomado de uma sensação mista de alívio e de segurança: “É isso que nós queremos. Que alguém nos cobre. Quase sempre, não sabemos se estamos fazendo certo ou errado, qual o caminho, como agir.” Lá estavam eles, meigos e tristes réus sem culpa.

Depois, foi uma parente minha, que aguarda a aposentadoria. Estava com a netinha no colo, a primeira. E emocionava-se. Sem que ninguém nada lhe perguntasse, ela falou como se de si para si mesma: “Tanta luta, tanto trabalho para manter o emprego, vencer na empresa, subir na carreira e, agora, vou me aposentar. O emprego e a carreira acabaram e eu não vi meus filhos crescerem, perdi marido, nem verei minha netinha ser educada. Não sei quem ou como são os meus filhos. Vejo minha neta e sinto apenas vontade de chorar. Não valeu a pena. Se pudesse, eu faria diferentemente.”

Usávamos palavras, frases, expressões que nada mais foram do que o ovo da serpente: “liberou geral”, “é proibido proibir”, “não há pecado abaixo do Equador”. Não percebemos que, com essas tolices, estávamos fazendo ruir a construção civilizatória. Ora, civilização é um processo transformador.Sempre para melhor. Para o homem civilizado – polido, culto, refinado – o bárbaro é uma espécie de criança; e a criança, uma espécie de bárbaro. Ambos hão que ser polidos. E o polimento e a polidez se dão também com o policiamento. Polir é policiar, palavras aliadas e derivadas da “polis”. Polícia não é, apenas, uma instituição repressiva. Trata-se de atitude do homem polido que se policia a si mesmo e exige o policiamento moral da sociedade de que faz parte. Polícia são leis, ordem e conduta que dão subsistência e manutenção de pessoas e da sociedade.

A nossa – que deixou de proibir – se tornou uma sociedade despoliciada. O moço mesmo se queixou: “Não fui policiado.” Logo, não foi civilizado. Sem leis e normas, assim vive a barbárie. Eis-nos, pois, aqui: os novos bárbaros.

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