Deus no pão e no vinho

Pensei em escrever sobre “Corpus Christi”. Desisti. Afinal de contas – pensei lá eu, ainda à procura de meus botões – são festa e solenidade muito especiais, com multidão de fiéis, para ser tema de um homem com fé fragilizada. A tentação de escrever tenha-me vindo, talvez, dos mergulhos na trajetória da Diocese de Piracicaba. Ou – ainda e também – por ter-me tornado cavoucador, ao mesmo tempo, da literatura e da história medievais, onde encontro tesouros. É quase uma recompensa à garimpagem: onde e quando se pensa haver apenas trevas, eis que se descobrem luzes brilhantes e fogos incandescentes.

Mas não vou escrever sobre isso. Nem de “Corpus Christi”, de que pouco sei. Lembro-me de uma das primeiras vezes em que essa festa – lá nas bandas do Monsenhor Jorge, incansável pastor e realizador – deslumbrou as pessoas. Então, as ruas se encantaram, homens, mulheres, crianças tecendo, com as mãos, pétalas e folhas e ramos que se transfiguravam em tapetes como que nascidos do coração. Tanta beleza era porque – acreditavam os fiéis – sobre eles, passaria o “Corpo de Cristo”. Realçava-se, então, o milagre que alimenta a fé de parte da cristandade: a presença real de Cristo no pão consagrado. E no vinho. Há mais de mil anos, uma freirinha da Bélgica teve uma visão dessa festa.

São deslumbramentos imemoriais. E, diante deles, condôo-me de mim, que permiti ir-se – não sei para onde – uma fé que, embora simples, a tudo iluminava de alegria, certezas absurdas preenchendo vazios e a própria solidão. Talvez, seja esse o mais precioso bálsamo da fé: quem a tem nunca está só, por mais abandonado se sinta, por mais machucado esteja. Fé de criança, fé de velhinhas piedosas, fé de monges, fé até mesmo dos loucos – feliz quem a tem. E tolo, o que a deixou ir-se.

Essa presença real de Cristo no pão e no vinho – crença de povos inteiros – dizem ser, ela, “o mistério da fé”. Não apenas outro dos tantos mistérios. Mas o mistério. Nunca entendi o porquê de tanto buscar-se entender, compreender, racionalizar. Se é questão de fé, explicar é tolice. Fé racional apenas esteriliza a alma de quem se atreve entender o intangível de sua crença. Todo amor acaba quando se ama com a razão. Amor e fé são vividos com a inteligência do coração. E essa é a mais difícil de se seguir. Pois o coração vê o que os olhos não enxergam; ouve o que os ouvidos não escutam; compreende o que a razão nem sequer entende.

Desisti de escrever sobre “Corpus Christi” por me sentir ausente na festa dos que têm fé na presença de Deus num pedaço de pão. Ou numa gota de vinho. E que esse pão e que esse vinho consagrados – como em mágica – tornem-se corpo e sangue de Cristo. É um absurdo. E eis aí o deslumbramento e o assustador de tudo isso: crer no absurdo, crer a partir dele.

Minha dificuldade é que – seja mágica, seja milagre – acredito nisso. E nem mais por questão de fé. Por entendimento simples, talvez de inteligência do coração ou de razão infantil: se Deus existe, Ele pode tudo. Logo, pode estar num pedaço de pão e numa gota de vinho. Por que seria tão difícil pelo menos admitir essa hipótese? O grande problema é acreditar em Deus. Depois, tudo é mais simples. Sei, apenas, que será profundamente tolo alguém que – acreditando seu Deus esteja num pão e num vinho consagrados – não se banqueteie dele. Quantos podem dizer que comem seu próprio Deus?

Eu – se reencontrasse minha fé escondida – iria comer desse pão e beber desse vinho todo dia. Por isso, não escrevo sobre a festa de “Corpus Christi”. Bom dia.

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