Diploma e Dona Rosinha

Foi uma emoção intensa. Uma de minhas filhas, vindo do exterior para visita à família, trouxe-me uma lembrança inestimável. Ela me advertiu: “Pode ser algo inútil, mas você irá gostar.” Gostei. É uma caixinha de música no formato de uma antiga máquina de escrever. Quando se põe a funcioná-la, o rolinho de papel se movimenta ao som da música.

Máquinas de escrever ainda me emocionam, embora tornadas obsoletas. Uma das razões está em, o de datilografia, ser o meu mais completo diploma da vida. Aliás, já escrevi que presidente Lula, tivesse nascido em Piracicaba, o primeiro diploma dele não seria o da Presidência da República, conforme ele já falou. Aqui, não. Neca e neres. Seria, tirante o do curso primário, diploma de dona Rosinha do Canto, em sua monumental Escola de Datilografia. Bem, monumental nem tanto, mas era-o para mim, com dez anos e morrendo de medo daquela mulher. Pois, por mais competente fosse, dona Rosinha amarrava a cara, como que medrosa, sei lá, das injeções de seo Canto, marido dela e “pharmacêutico” com “ph”.

A maioria dos pais esfalfava-se de tanto trabalhar, sonhando, pelo menos, em dar diploma de datilografia para os filhos. Sendo datilógrafo, o menino poderia, por exemplo, trabalhar no escritório do seu João Cardinalli, aprendendo coisas boas com o Orlando Michellin. Ou trabalhar no cartório do seo Ricardo Ferraz de Arruda, pai do João. Tendo máquina de escrever, era como se o futuro do menino estivesse garantido. O meu foi de embrulho: ganhei a Olivetti em 1954, escrevi um romance, danei-me. Para uns, datilografia ajudava; para outros, encrencava. É a vida.

A escola de Dona Rosinha ficava na rua 15 de Novembro, subindo, em 1950, a já velha escadaria, lá foi o escritório do Marcos Toledo Piza. No térreo, ficava a bicicletaria do Grisolia. Bicicletas eram tesouros infantis. Nelas, Guto Souza Campos e eu corríamos a cidade , “voando nas asas da Panair”, olha a besteira que escrevi. Que Panair, que nada: voávamos, Guto e eu, nas “rodas da Monark”. E quem sabia tudo de bicicletas, quem enchia pneus, acertava o guidão, era o Grisolia, um homem – Deus e a família dele me perdoem – feio como nunca se viu outro igual. Acho, até, que as mães ameaçavam a criançada: “Ou dorme ou chamo o Grisolia.” Devia ser.

Pensei, novamente e com saudade, em dona Rosinha ao ver a delicadeza da lembrança que a filha querida me deu, o simbolismo de ela compreender o que, para o pai, significou a máquina de escrever. Uma importância tal que, ainda, tenho as duas guardadas ainda que esquecidas, empoeiradas, coitadinhas. Certa vez, vendo-as, um dos meus netinhos assustou-se: “Vô, o que é essa geringonça?” Pois, naquelas geringonças, está toda a minha vida. Nada e ninguém, como as duas, a Remington e a Olivetti, sabem tanto de mim, de minha intimidade. Tristeza e alegrias, lágrimas e risos, guerra e paz, volúpia e continência – de tudo, elas compartilharam. E eu, coração volúvel de sempre, troquei-as pelo computador e pela internet…

Penso em dona Rosinha com saudade e tristeza. Guardo, ainda hoje, o diploma dela, que o Lula não tem. Não sou presidente da República, mas pior do que isso, foi descobrir que não sei mais usar máquina de escrever. Meus dedos não mais datilografam; agora, digitam. Se eu tivesse nascido em Garanhuns, não teria aprendido com dona Rosinha, meu pai não sonharia em me ver ajudando o Orlando Michelin – talvez, eu ficasse que nem senadores e deputados em Brasília. Ou rindo à toa, como fazem o presidente Lula e dona Marisa. Bom dia.

1 comentário

  1. Joao Lucas Grisolia em 03/05/2018 às 18:39

    Esse Grisolia da história era irmão do meu avô.
    O meu avô. João Antônio Grisolia, era dono da autorizada da Olivetti e da Loj de bicicleta. Nesse local era a loja autorizada. As bicicletas eram alugadas no local. O Grisolia da calçada era o Paschoal

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