Disk oração

Monsenhor Jamil – meu velho e querido amigo há quase 50 anos – foi esfaqueado enquanto celebrava a missa. Dizem ser, o autor, um louco, um desequilibrado mental. Confesso não ter sido apenas um golpe cruel a um amigo querido o que tão somente me perturbou. Foi a constatação – que se torna tragicamente evidente a cada dia que passa – de não haver mais limites em nada e para nada. Não foi um moço louco, o agressor. Foi mais um das multidões de loucos em que nos tornamos, essa sociedade mercantilista que perdeu completamente a noção entre o sagrado e o profano. Pois queiram ou não os tolos e os ignorantes, o mundo tem espaços e tempos sagrados, mais importantes do que os profanos. O mundo é um presente sagrado para as pessoas humanas que, em sua essência, sagradas também são. Ainda que não saibam. Ainda que tenhamos perdido a noção de nossa própria dignidade pessoal, intangível, intocável.

O mercado chegou e comprou também o sagrado. Invadiu lares, conspurcou consciências, comprou escolas e universidades, adquiriu templos transformando-os em igrejas. Aliás, isso é parte da sanha autodestrutiva do próprio homem, pois a primeira reação violenta e justa que se conhece de Cristo foi num templo transformado em mercado, quando expulsou os vendilhões a chibatadas: “Raça de víboras, sepulcros caiados, brancos por fora, podres por dentro.”

Desde o Iluminismo, a humanidade passou a conviver com que Weber chamou de dessacralização do mundo. Não se trata, apenas, do uso da razão diante de superstições, lendas, fábulas. Trata-se da tentativa de racionalizar o irracionalizável, de colocar mistérios infinitos dentro do finito das cabeças humanas. O sagrado da vida não está na mente, mas nos corações. E é ele, com a razão humilde, que forma o espírito humano. Religião é outra coisa. A espiritualidade do ser humano faz parte de sua gênese. O homem é religioso por natureza, mesmo não tendo religião. Já adorou o Sol, a Lua, o boi, o touro, a vaca, Ísis e Osíris, Buda, Krishna, Cristo, tendo adorado também Hitler, Stalin, Mao, Alexandre. Sozinho, perdido no profano, o homem se perde. Aí estão psicanalistas, psiquiatras, psicólogos, filósofos para falar sobre isso muito mais profundamente do que este escriba de aldeia.

Próximo ao lugar onde moro, há cerca de 10 salões evangélicos numa só rua. Dois deles, numa mesma calçada. Percebe-se claramente haver um “franchising” da fé. Lutero rebelou-se contra a Igreja Católica pelos abusos materialistas da Idade Média e a venda de indulgências, entre outros motivos. O sagrado da maioria das seitas evangélicas está nos bens materiais, a fé como mola propulsora para essa tal “teologia da riqueza”. Vendem-se milagres a preços módicos ou por fortunas. Num desses salões transformados em templo, na rua de minha casa, uma dessas empresas de fé anuncia, bem à porta: “Disk Oração”. Basta telefonar – não sei se há custos – e se tem consolo divino por telefone. Deus deve usar iPad.

O homem sem o sagrado – de onde vem a fraternidade, o respeito, o amor humano – se torna apenas profano. E, portanto, uma simples espécie de animal, o primata. Bom dia.

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