Dodô, que não virá.

picture (86)Um dos grandes desejos humanos talvez seja o de ter, para si, um tempo próprio e pessoal, onde nada ocorra, tempo sem acontecimentos. Qual um período de limbo, sem infernos e paraísos. Ou de águas paradas, de lusco-fusco, de solidão total. Aquele nada ver, nada ouvir, nada dizer, nada sentir. Como, talvez, um sono profundo sem perda de consciência. Num tempo em que nada acontece é quando a vida acontece.

No silêncio, o que é vivo germina. É a semente no útero materno, o grão de trigo no ventre da terra, o suspiro saído do peito, a oração vinda do fundo da alma. Escrever, compor, criar também é assim, como que apenas o dom de ouvir silêncios. Quem consegue ouvi-los ouve o que não foi falado, vê o que não foi visto. E entende. Ao contrário, pois, dos ruídos, que ocultam e enganam e confundem.

Ao encerrar as páginas de um último livro que escrevi, pensei estar emergindo de escombros. Se eu submergira num mundo quase misterioso, emergir dele era como retornar à simplicidades de que me esquecera, voltar à tona. A vontade passava a ser a de apenas ficar, estar, como que paralisado descansando num tempo sem acontecimentos. Olhar sem ver, ver sem enxergar. Ou olhar para fora vendo-se por dentro. Ou simples contemplação. Não sei.

A impressão é de, aos humanos, ser-nos, essa, uma das heranças de Ulisses, retornando de Ítaca: a viagem de volta, após viver paraísos e infernos, doçuras e horrores. Voltar e ficar à beira do fogão, vendo Penélope tecer a lã. Mas sem perder de vista a jangada balouçando nas ondas propícias, a tentação de navegar. O canto das sereias, o mel de Circe ainda enfeitiçando. Ouvir silêncios é ouvir a alma falar. E, então, ela diz de tempos, de lugares, de pessoas. Se eles chamam, é hora de ir.

Voltar à tona angustia, pois perde-se a noção do verdadeiro: está na emersão, na submersão? Para mim, a presença de Dodô, velho pescador, me perturba. Se ouço Dodô chamar-me, é ele mesmo que me chama, sou eu que invento? E, com o velho e enrugado pescador, revejo a areia da praia deserta, as águas mornas, o céu de estrelas que me pareciam bobas, tão bobas que nem brilhavam, nem piscavam. Mas era eu que não entendia, convivendo com pescadores. Pois era preciso uma inocência especial para estar com eles. E eu a perdera em lutas tolas e inúteis, em crenças estéreis, talvez em amores equivocados.

Ouvir silêncios é ouvir pescadores, estar com eles em cabana coberta de sapé, ao lado da fogueira, comendo peixe cozido na telha, bebericando, em caneca, cachaça de alambique. E conhecer sabedorias que – também para mim – pareciam mentiras. Mas pescadores não mentem. Eles contam os que os olhos vêem: peixes engolindo botes, monstros mudando marés, Nossa Senhora estendendo o manto azul para salvar náufragos.

Não sei se ele me chama, se estou à espera de Dodô, ele que “nunca subiu a serra”, que não conhece outro mundo senão o do mar. Ele me contou que não eram nem opacas nem bobas, as estrelas. Mas tristes. Pois aconteceu de uma delas, apaixonando-se por um cometa, decidir ir-se embora com ele. Até se despediu das irmãs. Mas a estrela-mãe descobriu os planos e aprisionou a fujona ao pé da mesa. “Essa tristeza que você vê – contou-me Dodô – é a estrela chorando ainda hoje. De saudade.”

Acreditei, pois pescadores não mentem. Mas, quando saímos de perto da fogueira, caminhando pela praia iluminada, Dodô me falou como que em segredo: “Era mentira minha. Se a gente vê estrelas sem brilho, são os olhos da gente que estão tristes.”

Depois da última página, começo a voltar à tona, à espera de Dodô. Mas ele não virá. Preciso submergir sozinho. Bom dia.

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