Dói. E como dói!

Sei já estar realizando as minhas cerimônias de adeus. Mesmo assim, resisto. Assim, cada dia é um recomeço, um reinício. E sentimentos e sensações são paradoxais: ora de angústia, ora de alegria incontida. Angústia por, de alguma forma, sentir-me perplexo neste hoje e agora nos quais parece não haver passado ou futuro. Alegria por reencontrar, com lembranças e na memória do olhar, aquilo que existiu, que foi e que tanto nos enriqueceu.

Quase ao final de um livro de fotos e postais antigos de Piracicaba – recolhidos ao longo de tantas décadas de vida – o meu editor, Arnaldo Branco Filho, propôs uma comparação entre o que existiu no passado, o que restou dele, aquilo em que se transformou a cidade. Ao lado do fotógrafo Fábio Rubinato, lá me fui pela cidade, tentando identificar ruas e locais das fotos e postais antigos. Não imaginei fosse tanto o sofrimento. Cadê aquele prédio antigo tão lindo? Cadê a casa onde nasceu o grande homem? E aquela, onde viveu  a grande mulher?

Meu olhar procurava e minhas mãos indicavam ao Fábio: “Esta foto aqui é a daquela rua. Este postal é daquele jardim. Ali, ficava a formidável fábrica. E, lá, a usina de açúcar. Esse regato que escorre do Mirante não é o Véu da Noiva, pois este é a bruma do céu, das águas do Salto. Mas cadê, cadê?”

Nada sobrou. Na rua Governador, há – bem na área central – dois edifícios de 1926 e 1927. A arquitetura é comovedoramente linda. Mas apenas na cúpula deles, praticamente desfigurados por atualizações discutíveis. E – escondida entre verdadeiros monstros de feiúra – a magnífica edificação onde dona Rosinha Canto tinha a sua Escola de Datilografia, uma arquitetura belíssima, mas em estado de deterioração?

Comecei a fazer alguns testes e indagar das pessoas se sabiam por onde corre o riacho Itapeva. Ninguém, dos que ouvi, soube. Até mesmo pessoas de minha família desconheciam-no. E se espantaram quando contei que o Itapeva corre por baixo da Avenida Armando de Salles Oliveira. Quem assassinou nossa memória? Sem história, Piracicaba será uma cidadezinha como outra qualquer. Pior ainda: cidade perversamente suicida.

Fomos fotografar o Mirante, jardim do Barão de Rezende. O coração gemeu mas quase explodiu na confusão da dor e da alegria. O Mirante é um dos mais belos recantos não apenas de Piracicaba, mas do Estado de São Paulo. Numa certa manhã de 1920, nebulosa, o maior crítico literário brasileiro, Sérgio Milliet, vendo a paisagem, boquiabriu: “Parece que estou na Suiça.” O fotógrafo Fábio Rubinato – que retornara da Suiça há poucos dias – comentou, mesmo com o abandono do Mirante, com a carência do rio: “Esse verde, essas árvores parecem, sim, com uma paisagem suíça.”

No entanto, naquelas alamedas, havia o vazio, um casal de dependentes químicos. Uma paisagem desperdiçada. Sem espectadores. Abandonada a si mesma. Ora, diz-se que o prefeito Gabriel Ferrato fará um concurso para outra reforma do Mirante, com verba de 3 milhões de reais para futuras obras. Para quê? Está tudo lá, maravilhosamente disponível, como uma noiva belíssima que precisa, apenas, de que lhe arrumem os cabelos, de que cuidem de seu vestido.

E o restaurante do Mirante? O Brasil todo sabia do “pintado na brasa”, inesquecível para quem o degustara vendo o Salto explodir em beleza. Que loucura ou incompetência foram essas, que permitiram o Mirante não ter mais um restaurante típico? Coisas de Barjas Negri, evidentemente. Mas Gabriel não é Barjas, mesmo com o cordão umbilical ainda preso. Fazer o piracicabano redescobrir, reencontrar o Mirante – eis o grande desafio. E, com a visitação e o deslumbramento recuperados, não haverá outra saída senão cuidar.

Doeu. Ah! como doeu procurar, rever, tentar reencontrar e ver, pela cidade, apenas destroços do que existiu. Nas minhas mãos, as fotos e os postais davam-me vida nova, como que exigindo, de mim, a  última missão: contar e cantar a história desta terra, mostrá-la, revelá-la cada vez mais. É o que farei pelo que me restar de vida. Bom dia.

5 comentários

  1. Sonia Maria Delfini em 07/10/2014 às 17:17

    Também procuro pela Piracicaba que conheci…… Tenho muito orgulho de ter sido aluna de Dona Rosinha Canto, lá em cima no seu Palácio.

  2. Chico em 08/10/2014 às 09:05

    Nasci e me criei na Vila Rezende, o Mirante, a praça a linha do trem e as margens do rio eram o meu quintal. Hoje olho pra tudo aquilo a que foram transformados e os meus olhos se enchem de lágrimas e a voz fica embargada. Muita triste tudo isso caro amigo Cecílio. Não há nenhum respeito pela história da nossa cidade, infelizmente.

  3. Antonio Carlos Danelon - Totó em 08/10/2014 às 12:39

    A Piracicaba do frei Marcelino morreu. Temos agora uma cidade como as outras disputada pelo poder econômico e pela ganância. A violência é sintoma disso. Penso que a única e boa obra feita pelo Barjas tenha sido a eleição de Ferrado, por enquanto mais sensível, preocupado com a vida e com as pessoas. Espero não estar enganado.

  4. Luiz Arruda em 16/10/2014 às 00:32

    Falta cultura e educação.
    Meu avô, Ricardo Ferraz de Arruda, com trajetória ligada à vida política e cultural de Piracicaba na ocasião, no seu primeiro ato como prefeito foi criar duas escolas: a de Ibitiruna e a Dr. João Conceição.
    Depois criou o Diretório Municipal de Geografia. alem da primeira biblioteca do estado de S. Paulo.
    Cante, Cecílio, a história da nossa terra! Tem muito gestor por aí que precisa conhecer.

  5. Luiz Arruda em 16/10/2014 às 00:34

    Correção: primeira biblioteca publica do Estado de São Paulo.

Deixe uma resposta