A dureza de ser careta

Este texto foi publicado originalmente em setembro de 1988, no semanário impresso A Província, e o recuperamos para marcar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

Está sendo cada vez mais difícil para os caretas – e eu me incluo entre eles – conviver com as pessoas. Estamos sendo atropelados, justamente porque nossa maneira de ser e de conviver parece que foi superada, algo que parece ter existido há centenas de anos. Um professor, por exemplo, de minha geração não consegue dar mais aulas, pois os alunos faltam apenas agredi-los fisicamente, já que os agridem com palavras, gestos e atitudes.

O mundo parece que se transformou em casa-da-mãe-joana. Vejam os cinemas, lugar onde não mais se assistem a filmes, mas a espetáculos da plateia: gritarias, conversas altas, verdadeiras feiras-livres onde as pessoas comem pipocas e sanduíches, bebem refrigerantes, pouco se importando com o que acontece nas telas.

E no trânsito? É a guerra, como se o automóvel fosse a arma mortífera de cada batalha. E vocês já perceberam como por outro lado a moçada fica se agarrando em público? O amor, realizado assim, nada mais é que uma agressão de pessoas inseguras, que pouco entendem do belo e, por isso, o vulgarizam.

E numa repartição pública, onde os funcionários lá devem estar para atender ao povo, pois é quem lhe paga os salários? O povo paga para ser agredido, desconsiderado, humilhado. Há poucos dias, uma jovem senhora pediu-me o isqueiro para acender seu cigarro. Instintivamente, fiz menção de eu mesmo lhe acender o cigarro. Mas ela arrancou-me o isqueiro da mão, quase ofendida pelo meu gesto de consideração.

Lembro-me, aliás, de um dia em que, no metrô de São Paulo, levantei-me para ceder meu lugar a uma jovem senhora grávida. Ela se recusou e me disse: “Você pensa que eu estou doente?” Quase morri de vergonha, pois ao lado outros jovens riam de mim, aplaudindo a valente resposta. E nos elevadores ninguém mais se cumprimenta. Ninguém mais agradece, pede licença, ninguém mais pede desculpas por um esbarrão ou por uma palavra indelicada.

Pois não existem mais indelicadezas: tudo é natural, normal, habitual – é a luta-livre. Há poucos dias fui convidado para um encontro às nove horas da manhã. O jovem que iria coordenar apareceu ao meio-dia. Não deu uma só palavra de explicação, sobre o atraso de três horas. E nós o esperamos, apenas para lhe dizer que ele era um irresponsável.

Nos restaurantes, as pessoas se atropelam para disputar uma mesa e, quando o homem puxa a cadeira para a mulher sentar-se, só falta levar uma vaia. É… está cada vez mais difícil para um careta conviver com os que não são caretas. E a solução para os caretas é ficar dentro de casa. Bom dia.

 

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