…E a ave avisou.

A filha primogênita e o marido – ela, socióloga; ele, geógrafo e geólogo – são, como os chamo, andarilhos da vida. Saem, em pesquisa, mundo afora. Nunca sei onde estão, por mais me avisem com antecedência. Ora num lugarejo da China ou numa metrópole do Japão, ora entre budistas da Índia ou junto a povos primitivos da África.

Numa de nossas conversas, disseram-me da experiência humana vivida no Mali. Banhavam-se em rios ou com canecas da água que escorria de caneletas de bambus. E, nos finais de semana, participando do ritual dos malineses, iam até as montanhas onde famílias deixavam os seus anciãos. Eles eram instalados nos altos das montanhas, quanto mais perto do céu melhor, para ouvir o que as aves contavam. Eram os áugures das famílias. Comida, água, cobertas eram-lhes garantidas para eles não passarem qualquer necessidade. A missão deles, dos velhos, era apenas ouvir avisos das aves. Pois aves avisam.

Dia desses, a filha percorreu os olhos pelo jardim, sentiu o silêncio modulado por canto de pássaros, compreendeu meu recolhimento, falou: “Pai, você ficou o pajé da tribo. O que os passarinhos lhe contam, que avisos lhe dão?” Descobri, então, que, tentando viver em estado mais contemplativo, ouço, sim, vozes da natureza. São brisas murmurando, aves pipilando, sons harmônicos dessa sinfonia singular formada pelo que me cerca. E a linguagem é diferente, como se ouvidas pelo coração. E não é que o coração tem – ele, sim – os ouvidos de ouvir?

Na verdade, sabemos do inexplicável e nos esquecemos disso. Ora, se velhos áugures ouvem o que as aves avisam, a nossa gente também o ouvia. Pois, quando se tratava de cochichos, de segredos, aquele recado indefinido que pessoas contavam, as coisas eram explicadas por uma frase singular e significativa:”Passarinho me contou.” Não é preciso, pois, ser idoso e morar em alto de montanhas para ver e ouvir. Basta ter coração de sentir.

Entre beija-flores, bem-te-vis, sabiás, sanhaços, resolvi ouvir o que o bem-te-vi teria a me dizer, o que iria a ave avisar. E o passarinho me contou, desconsolado: “Somente vocês ficam marcando a passagem do ano. Um dia é sequência do outro. Esse novo ano de vocês será igual ou pior ao que está acabando.” Quis argumentar, ele me falou: “Vocês não vêem e não aprendem. Olhe bem: você me viu, mas não bem me viu. Eu vi e bem-te-vi. Quando vocês aprenderem a bem ver o mundo, o mundo será mais bem visto por vocês. Não foi o nosso Criador que sugeriu vocês olhassem as avezinhas dos céus, os lírios dos campos? Pois aí está: os lírios não tecem e não fiam mas nem Salomão, com toda sua glória, se vestiu como sequer um deles. E eu, que não planto e não colho, sou alimentado pela natureza. Bem me veja, amigo, bem me veja.” – falou o bem-te-vi.

Quis ouvir o sabiá, todo vaidoso de sua boniteza. Ele ouvira a preleção do bem-te-vi. Ao bicar o chão, colhendo algo para se alimentar, falou: “Vai piorar, vai piorar… Tem que mudar por dentro. Toda a gastança desse fim de ano de vocês irá exigir mais trabalho, mais correria, mais produção. As crianças ficarão mais solitárias, longe dos pais; maridos e mulheres irão se desentender por cansaço, sem ânimo e forças para amar; a violência aumentará. E não adianta vocês reclamarem da corrupção dos políticos como se apenas eles fossem corruptos. Corrompeu-se tudo, o povo foi minado pela corrupção e gostou.Você percebeu que passarinhos ficamos pouco tempo no chão e nos soltamos para voar pelos espaços? Vocês precisam deixar de rastejar como as serpentes e permitir que suas almas voem em busca do belo e do bom. Almas têm asas. Ninguém mais percebe isso.”

Mal vi o beija-flor aproximar-se, entristecido da humilhação. Picando uma flor aqui, picando outra lá, ele falou baixinho: “O problema está na esperança. Vocês perderam o sentido dela. Pensam que esperança é ficar esperando, querendo que as coisas aconteçam, acreditando passivamente que o melhor irá acontecer. Essa é uma espera inútil. É preciso ir em busca daquilo pelo que se espera, lutar, querer.”

Perguntei, numa iluminação: “Como Sísifo?” O colibri não sabia de quem se tratava. Expliquei ser o homem tenaz que carregava a imensa pedra morro acima e, chegando ao alto, a pedra caia. Ele tentava novamente, tudo se repetia, um carregar pedras sem fim, um subir e descer intermináveis. O beija-flor não se interessou. “Mas não é o que vocês estão fazendo ano após anos, repetindo as mesmas coisas? Isso não é esperança, é burrice.” E me desejou um feliz e diferente ano novo, avisando:”Tenha esperança no belo que encanta, vá em busca dele e você ficará encantado.”

Entendi.

1 comentário

  1. Delza Frare Chamma em 21/10/2012 às 16:47

    Linda crônica! Tocante! Como porém ter esperança, lindo beija-flor, se o animal-homem desaprendeu a amar? E no desamor nunca se encontra a esperança. Para substituí-la vamos todos às compras. E o consumismo substitue todas as demais emoções.

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