E o coração decidiu

Esse texto foi publicado em 28 de agosto de 1979 em O Diário. Foi selecionado para o livro “Bom Dia- Crônicas do Autoexílio e da Prisão”, publicado em 2014.

 

Já se anunciavam os prenúncios de um incontrolável vendaval interior. Tudo em mim se inquietava, uma insatisfação agônica. Na realidade, eu não tina coragem de admitir a guerra íntima, a batalha de mim para comigo mesmo. O cansaço era imenso, mas eu resistia. Olhava para minha mulher e meus filhos e, no mais fundo da minha alma, me sentia ladrão e ladrão de mim mesmo. Algo estava errado, tinha certeza, mas não tinha a coragem de aceitá-lo.

Se – desde a juventude – fora eu de dormir poucas horas, a perda de sono se tornara crônica. Saíamos d’O Diário por volta das duas, três horas da madrugada. Ou cada um de nós ia para sua casa, ou usávamos o último boteco para relaxar, dissimular angústias, ainda que evitássemos – pelo menos eu o fazia – enfrentá-las. O Bar do Tanaka parecia nosso templo de queixumes. Quando eu não saía com os companheiros, retornava ao lar, que eu sabia ser aconchegante e estar, àquelas horas, silencioso e pacífico. Sentava-me, então, à máquina de escrever. E escrevia. E uma leve sonolência surgia. Deitava-me e, duas horas depois, já estava acordado. Banhava-me, barbeava-me, ia à missa, a primeira do dia. Tornei-me homem de comunhão diária.

Algo, porém, continuava devorando-me as entranhas da alma e do espírito. Então, conversei com amigos médicos. “Ansiedade…” – respondiam-me. E um deles, João Carlos Forastieri — amigo querido – apenas receitou: “Viaje a passeio já, você e a Mariana. Só os dois. E para um lugar de que vocês mais gostem.” Senti um leve arrepio de entusiasmo. E o lugar que eu mais queria e amava era o Rio de Janeiro.

 

Fomos. Passeamos, divertimo-nos, amamo-nos. Mas eu continuava sem conseguir dormir além daquelas poucas horas. Amantes do teatro, passamos a procurar peças que nos entusiasmassem. Li, então, o nome de uma delas: “Leiaute”. De um autor que eu não conhecia, Celso Queiroz Telles. Não havia nem mesmo sinopse do tema. Arriscamo-nos a ir, às escuras, por que não? Foi, então, nas primeiras cenas que comecei a inquietar-me. Era um discurso sobre fragmentos da vida de um publicitário que se entregara à sua luta de corpo e alma, sem medir consequências, sendo, por isso mesmo, lentamente destruído. Meu peito explodiu. Vi-me no palco, a minha vida sendo descrita, narrada,

desnudada. E o final era trágico.

Ao sair do teatro, Mariana me amparava, como se eu fosse cair A atordoação era total e — além da explosão do peito, das lágrimas que rolavam incontrolavelmente — era tudo de mim que parecia também querer explodir: fígado, estômago, coração. E eu me sentia derrotado, incapaz de controlar-me, impotente diante de forças que me minavam.

Fomos jantar. À mesa, tomei as mãos de minha mulher e, sem qualquer rasgo de racionalidade, mas movido pelo coração, como um cavalo fogoso e indomável, disse: “Tomei a decisão. Vou vender o jornal, quero exilar-me por iniciativa própria, e dedicar-me a escrever, apenas a escrever.” Naquela noite, voltei a dormir. Meu coração decidiu e vou cumprir o que ele ordenou. Sei ter, em mim, sêmen de flor. Vou, pois, plantar meu jardim na vida, sem mais me contentar em apenas ser o cortador de ervas daninhas. Bom dia.

Deixe uma resposta