…e o gato comeu.

Simpática, afável, a jovem mulher – segurando a mão do filhinho – me pediu uma informação. Atendi-a: “Pois não, minha senhora…” A afabilidade dela desapareceu: “Senhora? Por que, senhora? Você está me achando assim tão velha?” Tentei dizer-lhe ser do tempo em que havia tratamento respeitoso para com mulheres casadas, mesmo que jovens. Desisti. Cadê o toucinho daqui?

Pois é isso. Parlendas, cantigas de rodas, brincadeiras infantis, a riqueza do folclore conseguem interpretar coisas tidas como inexplicáveis. Os mundos acabam e dão lugar a outros que nem sempre são melhores. Mas o novo nunca é garantia do melhor. De qualquer maneira, como se fosse uma fatalidade cronológica, a cada duas ou três gerações tudo se transforma, mundos acabam.

Das brincadeiras infantis, do folclore ingênuo das gentes, havia uma charada – adormecida em algum escaninho da memória coletiva – que parece explicar tudo. Era assim, ainda me lembro:

“Cadê o toucinho daqui? /O gato comeu./ Cadê o gato? /Tá no mato./ Cadê o mato?/ O fogo queimou./ Cadê o fogo? /A água apagou./ Cadê a água?/ O boi bebeu./ Cadê o boi?/ Tá amassando trigo./ Cadê o trigo?/ A galinha espalhou./ Cadê a galinha?/ Tá botando ovo./ Cadê o ovo?/ O frade bebeu./ Cadê o frade?/ Tá rezando missa./ Cadê a missa?/ O povo ouviu./ Cadê o povo? /O povo sumiu, o povo sumiu…”

Tenho plena convicção de o mundo ter acabado. Pelo menos, aquele em que fui criado, em que me deslumbrei, no qual constitui família, alimentei sonhos, gerei e eduquei filhos. Na verdade, acabou-se o mundo das pessoas com mais de 50 anos, em todas as latitudes e longitudes. As paredes ruíram, o telhado caiu, a esperança é a de que ainda restem pedaços de alicerces. Pelo menos alguns. O massacre moral está próximo de transformar o ser humano em excrescência.

A meus pais, até a morte deles, chamei-os de senhor e de senhora. Às pessoas mais velhas, também. E a mulheres jovens, quando ou se casadas. Não carrego trauma algum disso e nem precisei de terapias por ter conhecido a hierarquia das coisas e o respeito por pessoas. Ficávamos em fila para entrar na sala de aula e usávamos uniformes que substituíam as roupas rotas e remendadas dos mais pobrezinhos. O inspetor da escola era tão respeitado como o guarda da esquina. Aquela disciplina deu-nos um estranho mas real senso de equilíbrio e de respeito.

Quando professores chegavam à sala de aula, os alunos levantavam-se, até mesmo quando já nas faculdades. E, nos grupos escolares, a professora era como que uma deusa intangível, admirada, querida e temida. A disciplina impunha respeito e despertava temores: de ser colocado para fora da sala de aula, de ficar de castigo, de ser reprovado no fim do ano, de outras punições acontecerem em casa, a partir do que se fizera na escola. A mestra era a senhora professora. O mestre era o senhor professor. Tios eram parentes, nada mais do que parentes. Não há educação sem dor.

Nos 1960, começou a festa. Ensinei meus filhos a me tratarem por você. Havia um paradoxo: eu, chamando meu pai de senhor; meus filhos chamando-me de você. E a bagunça aumentou quando, para padres, Jesus Cristo deixou de ser Nosso Senhor para ser tratado como Chefão, Amigão, Você. Até de Cristo minha geração tirou o tratamento respeitoso, formal, usando o coloquial que se usava nas esquinas, nos botecos, nos clubes. Nas igrejas, a melódica de Bach e Mozart soou a partir de cuícas e pandeiros.

É perceptível a confusão entre tolerância e covardia moral. Ora, tolerância é virtude e pode ser um ideal moral. Seria tolice pretender, em poucas linhas, emitir conceitos de tolerância sem considerar pluralismos morais, autonomia e liberdade, um sem fim de considerações. No entanto, há questões que não admitem vãs filosofices. Não se pode, por exemplo, admitir a tolerância diante da corrupção de políticos e governantes; não há tolerância diante de estupradores, traficantes de drogas, pedófilos. São situações e atos intrinsecamente maus e, portanto, ser tolerante diante deles é moralmente injusto, pois estaríamos sendo coniventes com coisas moralmente más.

Com a tolerância irresponsável, pais deixam de ser pais, professores perdem a força moral, crianças são treinadas para o vale-tudo. Cadê o toucinho daqui? Passada já é a hora de implantarmos a tolerância zero diante do caos a que fomos jogados, mundos destruídos sem serem substituídos por nada. Tolerância não pode se confundir com covardia moral. Pois é covardia ver o gato roubando o toucinho e ninguém reagir.

O mato queimou, o fogo apagou, a missa acabou e cadê o povo? O povo sumiu, o povo sumiu…Bom dia.

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