E o palhaço, o que é?

Uma das mais chocantes lições da vida, eu a aprendi com um filho de criação. Nós o recolhemos quando ele tinha apenas quatro anos. Mas não sabíamos já estar, ele, todo machucado na alma e no espírito, formado por uma escola de sobrevivência que era a da violência e do individualismo. Propusemo-nos – a família toda, minha mulher, eu, os outros filhos – a dar-lhe atenções especiais, esbanjamento de amor, no desejo de suprir-lhe as carências afetivas e de aliviar-lhe as feridas da alma.

O menino tornou-se nosso filho, verdadeiramente um filho. Foi cuidado e educado com delicadeza extrema, nos melhores colégios, participando de todo o universo familiar: férias na praia, cursos de arte, de música, clubes recreativos, viagens. Mas nada dava certo. Fomos chamados, por cada escola que ele freqüentou – junto com os outros irmãos – para que fizéssemos sua transferência, pois nenhum professor o suportava, tal a rebeldia. Até que, vendo-o brincar sozinho e frequentemente, percebi suas habilidades manuais, a facilidade com que lidava com ferramentas, com que fazia seus próprios brinquedos. Deu-me um estalo e fui conversar com o então diretor do SESI, meu amigo, o saudoso professor Boscolo. Imediatamente ele entendeu e concordou comigo: seriam os cursos técnicos os ideais para o meu menino de criação.

A transformação foi quase inacreditável. O garoto se tornou outra pessoa, suas habilidades se desenvolveram, logo começou a estagiar em indústria poderosa, o salário depositado em poupança. Ele – ao contrário dos meus filhos da carne – era um garoto de uma objetividade impressionante, ligado ao mundo concreto e real, sem qualquer filosofação ou indagações intelectuais. Um dia, ele desapareceu. Nunca mais o vi. Depois de 25 anos, ainda sinto saudade.

Estou querendo dizer do quanto me amarguro ao ver, hoje, crianças e adolescentes prisioneiros do computador, dos celulares, dos jogos e do lado pernicioso da admirável internet. Há coisas na vida de uma criança que farão falta pelo resto da existência. O calor humano, os cuidados, a intimidade com a natureza, o reino da fantasia, fábulas, lendas, histórias da carochinha, orações ao pé da cama. Que criança ou adolescente sabe, hoje, qual o sabor da manga apanhada no alto da árvore? E o da jabuticaba tirada do pé? E nadar no rio? E correr pelas ruas descalço, sem camina, cabelos ao vento? E inventar seu próprio brinquedo?

A não ser o “Circo Soleil”, na televisão, quantas crianças já foram a circos, se ainda eles existem? Quando chegavam, desfilando pelas ruas da cidade, os circos eram a alegria e a festa das gentes. “Hoje, tem marmelada?” – gritava o palhaço. E a criançada: “Tem,sim senhor.” E prosseguia: “Hoje, tem goiabada?” E o coro infantil: “Tem,sim senhor.” Para, enfim, o palhaço provocar: “E o palhaço, o que é?” Os gritos aumentavam: “É ladrão de muié.”

Minha geração é culpada, perante a história, de ter deixado morrer esse universo de singelezas. Seremos réus até o fim dos tempos, pelo crime de transformar crianças em robôs. Bom dia.

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