Ele, Pelé

PeléNão me canso de, para mim mesmo, repetir-se insistentemente: fosse, eu, mais humilde, estaria andando de joelhos pela vida. Pois tantos foram-me os privilégios concedidos que não consigo admitir tenha sido merecedor deles. Ainda ontem, num supermercado, uma velha conhecida, cumprimentando-me, falou: “Quantas histórias, hein?” Sim, quantas histórias! Tantas que, ao pensar nelas, eu me assusto e me espanto. E rendo graças a deuses desconhecidos.

Pelé completa 70 anos e o mundo está em festa. Não haverá homenagens suficientes para honrar o que esse homem, com uma bola, fez pelo Brasil, pelas pessoas de todos os quadrantes. Ter visto Pelé jogar – mesmo detestando-o pelo tanto mal que fez ao Corinthians – foi como estar diante de um deus negro, fantasticamente sobre-humano, bruxo e feiticeiro, mágico, rapidez de relâmpago, leveza de bailarino, saltimbanco, trovador, todas as artes num homem só. Com Pelé, desmente-se a máxima de Nelson Rodrigues, de que “toda unanimidade é burra.” Pelé é a unanimidade plena, o reconhecimento de mistérios que levam um homem a realizar milagres. Pelé, o milagreiro, talvez seja essa a maneira mais simples de tentar explicar à lembrança de cada um de seus feitos.

Não apenas vi Pelé jogar, mas – e aí está meu privilégio especialíssimo – vi-o nascer para o futebol, um garotinho que deslumbrava multidões como se fosse um prodígio da natureza. Foi em Bauru. Desde a infância, passei férias na casa de tios queridos, na humilde e doce colônia dos ferroviários. A casinha pequenina abrigava alegria e paz. Na colônia, era como se houvesse uma só família, na solidariedade da pobreza e na das alegrias gentis que apenas os humildes conhecem. Jogávamos futebol, jogos de botão, nadávamos em córregos, namorávamos, contávamos causos. Então, um dos causos mais fascinantes era o que os moços comentavam, o negrinho jogador de futebol, um gênio, um malabarista. Levaram-me para vê-lo num jogo do BAC, o Baquinho. O estádio, onde hoje parece estar um supermercado, estava lotado. E a multidão entrava em delírio quando um garotinho magérrimo, pés grandes para o seu tamanho, driblava, fintava, marcava gols, um bailarino e um meteoro. Ele deixara de ser Dico para ser já chamado de Pelé. A multidão ia lá apenas para vê-lo.

Ora, o sobrenatural me fascina e Pelé estava além do natural. Então, depois de ver aquele garoto jogar num campinho de Bauru, contei, cá em Piracicaba, a amigos meus – Fernando Pacheco, Mathias Vitti, que jogavam nos juvenis do XV – as maravilhas que eu vira: “O XV deveria contratar aquele rapazinho.”, falei como se fosse, eu, o único a descobrir a jóia rara. Em 1955, quando húngaro Puskas era incensado como o maior jogador de futebol do mundo, o então presidente do Santos, Modesto Roma, declarava para o jornal “O Mundo Esportivo” que o “maior jogador do mundo estava em Santos e se chamava Pelé.” Ele tinha, então, 15 anos.

De substantivo, Pelé se transformou em adjetivo. Basta alguém ser notável em sua especialidade para que, dele, se diga ser “o Pelé da profissão.” Agora, quando ele chega aos 70 anos – ainda vigoroso, entusiasmado, com mais humildade e sabedoria – é o mundo que lhe rende homenagens como poucos homens as receberam e mereceram. A República do Brasil – com nosso espírito monarquista, na nostalgia de reis e de monarcas – enche-se de orgulho diante de nosso verdadeiro rei, sua majestade primeira e única, Rei Pelé: “Ave, Pelé. Os que viram o saúdam e agradecem!” Bom dia.

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