Eles e “a casa da gente”

Um que outro amigo me pergunta de como garimpar assunto para uma coluna diária. Ora, assuntos, temas, estão no ar. À vista, aos ouvidos, tocando a pele. O problema está “naqueles dias”. Pois o homem também os tem, ainda que diferentes dos de mulher. “Naqueles dias”, o contador de histórias perde o apetite, desfalecem-lhe desejos, fogem-lhe os sabores. Tudo lhe parece insosso. Mas a sensaboria é dele, está nele, escrevinhador.

O cotidiano é como a mesa posta com o trivial caseiro bom e saboroso: o arroz com feijão, a couve, o tutu, o torresminho, a macarronada. De nada terá adiantado, no entanto, o capricho da cozinheira se, ao comensal, faltar apetite e prazer de saborear. Isso acontece com o contador de história. Ele não vê e não ouve, não enxerga e não escuta. Encaramuja-se. Mas a vida, apesar dele, recende seus odores, rescende a odores, ressoa todos os sons, abrindo cortinas surpreendentes. Mas, “naqueles dias”, o contador de histórias é incapaz de ouvir até mesmo o flautista mágico de Hamelin.

Dessa faina do escrevinhador do cotidiano, já falara, com maestria, o Luiz Fernando Veríssimo. Sua verve refinada explicou a vantagem do cronista diário sobre o ocasional: escrevendo diariamente, entre a muitas tolices que se escreve, sempre é possível alinhavar pelo menos uma croniqueta interessante. O cronista ocasional, no entanto, vê-se cobrado a publicar textos impecáveis. É a diferença do almoço cotidiano e o banquete. Naquele, suporta-se o feijãozinho fora do ponto; no banquete, tudo tem que ser irrepreensível.

Pois bem. Muitas vezes, vejo-me “naqueles dias”. Então, a sensaboria das coisas, a insipidez, o desejo adormecido, recolhimento. Nem conversa de passarinho, nem chuvisco na relva, nem raio de luar, nada parece capaz de motivar. Insosso, fico eu. Mas aprendi que ouvir fala de políticos e, em especial, as de Lula pode ser terrível para os ouvidos, mas altamente inspirador para quem escreve. Ouvir políticos sacode o escrevinhador. De rir ou de chorar.

Ora, anseio, do fundo da alma, por pelo menos alguns dias de relaxamento, por algumas horas que seja. Até médico meu já exigiu. E não consigo tê-los, mísero escrevinhador caipira cujos compromissos são apenas os de pensar e escrever. Houve tempo em que Lula me servia de exemplo até para acalmar-me, pois eu boquiabria diante da espantosa serenidade do Lula no exercício da Presidência da República. Lula é a prova concreta, palpável, perceptível do que Ulisses Guimarães falava: “O poder é afrodisíaco.” Lula e Marisa parecem em êxtase.

Às quartas feiras, eles recebiam amigos para assistir a filmes no Alvorada, jantares especiais, charutos cubanos e licores refinados. Aos sábados, churrascadas. E, certa vez, o Presidente – cada vez mais parecido com o Conselheiro Acácio – surgiu na televisão dizendo que “governar o Brasil é como governar a casa da gente: sempre falta dinheiro.” Ora, sem desrespeito, quis mandá-lo caçar sapo. Pois me senti tratado como idiota, débil mental.

Naqueles dias, se nem o flautista de Hamelin me motivava, motivou-me o Lula: “a casa da gente”, é o caramba! Que ele não confunda as coisas: na “casa da gente”, não há políticos negociando; na “casa da gente”, pais e filhos trabalham e lutam e não tem mordomos e comida paga e roupa lavada. Na “casa da gente”, não há aposentadorias privilegiadas, nem foros privilegiados para delitos comuns, nem companheiros latifundiários ou banqueiros amigos.

Eu não quis, à época, acreditar que Lula tivesse dito aquilo a sério. Mas, agora, com essa crise continuada do Congresso Nacional, nas duas casas legislativas, com a farra de deputados e senadores, sinto que Lula e os próprios políticos têm razão: eles acreditam que o Brasil é “a casa da gente”. Ou seja, deles. Por isso, tornou-se a casa-da-mãe- joana. Ouvir indecências que eles falam é encontrar assunto na hora. Mas estou fugindo de políticos. Bom dia.

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