Embelezando a feiúra

picture (8)Era um lugar de quinquilharias. Não resisti, entrei e fui seduzido por um ferro de passar roupas, daqueles antigos, que funcionavam com carvão e brasas. Animado, comprei-o, levei-o para casa. Meu pessoal ralhou: “Você não sabe que, para passar roupa, já não se usam trambolhos como esse?” Mas – caramba! – eu não comprara a peça para ser usada. Vendo-a, eu enxergara, nela, um enfeite.

Ora, coisas e pessoas, após seu tempo de brilho, não sobrevivem se não cumprirem novas funções. Quem conhece, hoje, um motorneiro de bonde? Quem já viu um daqueles ferros de passar roupa, funcionando com brasas e carvão? Ora, ele perdera a utilidade original, a serventia, mas poderia tornar-se um belíssimo vaso de flores ou, tão só, um objeto decorativo, estético, num canto de minha sala. O ferro, inútil para passar roupas, sobreviveria ao cumprir sua nova função: a de embelezar.

Lembro-me disso toda vez que vejo a garotada navegando pela Internet, em meio a um universo feio e sujo de pornografia. Confesso, em todos os meus longos anos de leitura, não ter visto cenas, imagens, relações sexuais tão estranhas e esquisitas. “Coisa feia”, falo de mim para mim. E boquiabro. Pois, descobri, de repente, existir um tempo e uma civilização quando e onde não mais há “coisas feias”. E, também de repente, por sentir que o viver de minha geração talvez tivesse sido mais sedutor pelas tantas “coisas feias” que fomos obrigados a desvendar, a romper, a enfrentar, tornando-as bonitas enquanto pudemos.

No entanto, como nos contos de fadas, acabou-se o que era doce: o feio ficou bonito, mas o bonito enfeiou-se. Como o ferro de passar roupa, minha geração parece não ter conseguido dar-se outras funções e cá estamos, agora, perplexos e aparvalhados, como aparvalhados e perplexos tinham ficado nossos avós. Qual é a função, hoje, dos que tanto ainda cantamos belezas de “anos dourados”?

Quase tudo era “coisa feia”. E o nosso desafio foi alcançar o quase milagre de transformar a “coisa feia” em algo maravilhoso, vívido e realmente sagrado: a sexualidade exercida com respeito. Foi como tirar pérolas de lixeiras. Pois “coisas feias”, estas havia em abundância: desrespeitar pai, mãe, professores; dizer palavrões em público, cuspir; comer depressa e de boca aberta, falar alto e aos berros, xingar, fazer barulho, expansões sexuais públicas… Na verdade, “coisa feia” era tudo o que afrontasse as normas de civilidade e, portanto, do respeito em relação ao outro. Dizer-se civilizado era um orgulho. Hoje, há quem se orgulhe de imitar bárbaros.

Minha geração – querendo abrir o fechado – não apenas abriu, mas escancarou. Perdemos os limites na busca de uma liberdade que não sabíamos definir. Éramos mais contra tiranias do que a favor de direitos. Sinto, hoje, que, nos atropelos, profanamos o sagrado e não nos demos conta do erro. Ou nem sequer sabíamos que coexistissem, o sagrado e o profano.

Ora, é possível transformar um velho ferro de passar roupa em peça formosa, catita. Logo, possível deve ser – a homens e mulheres de minha geração – exercer novas funções. Já vivemos nossos 20 anos de primaveras, os 25 anos de verões. É, o Outono da vida, tempo de ficar, época de frutos. Não mais de colhê-los, mas de dá-los. Ferros de passar roupa, sem mais aquela utilidade, podemos encantar os que chegam com novas funções. A de civilizar os tempos, na sabedoria de dizer que, no mundo e na vida, ainda existem “coisas feias”. Embelezar a feiúra é preciso. E bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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