Enquanto houver e tiver luz

picture (75)Há muitos anos – tantos que já nem me lembro de quantos – li, numa correspondência de Proust, a orientação que lhe dera uns dos grandes escritores de sua época, o inglês John Ruskin. Para o jovem Proust, Ruskin sugeriu: “Trabalhe enquanto tem luz.” Cultivei, então, algum tempo, outra dúvida: enquanto Proust tinha luz ou enquanto havia luz? Resolvi entender que era preciso ter a luz interior, mantendo-a, e viver até o fim outra luz, a da vida. Devia ter sido isso. Se não fosse, passaria, para mim, a valer pelo menos como advertência.

Quando coloquei um ponto final no trabalho, vi as horas: 11h30. Manhã de terça-feira, 14 de julho. Ano: 2008. Imaginei a emoção de astronautas aguardando alguém apertar um botão da cápsula, o coração batendo, o início do vôo, da jornada, de outra jornada, a aventura em direção ao espaço. Então, cliquei: “enviar”. E enviei. Lá se iam, para diagramadores e, em seguida, para a editora, sei lá quantas mil palavras, mais de 300 mil caracteres com espaços, mistura de sonhos mas, também, de lágrimas, suores e trabalho intenso. Não houve sangue, pois da alma não havia mais o que tirar. Era um outro livro, a história apaixonante do C.C.R.Cristóvão Colombo, que já iniciou os festejos de seus 70 anos. Tudo me saíra, outra vez, do fundo do peito, enviei. Cliquei. Acabou. A montanha de letras e de palavras não sei de que maneira cortou os espaços, voou, caiu no computador do artista diagramador. Fim.

Segurei firme nos braços da cadeira, não sei se a certeza ou o receio de que –à medida ia, o peso, saindo-me dos ombros – o alívio me fizesse levitar, talvez sair voando pelo espaço. Não sei como é nos outros, mas, em mim, cansaços extremos dão-me vontade de chorar. De sentar na sarjeta ou numa pedra do jardim, cruzar os braços, apoiando-os nos joelhos e, então, chorar. Pois o peso do corpo – talvez, o da vida, o peso do mundo, não sei – deve estar em lágrimas retidas de cansaço. Deixando-as correr, escorrer, escapar, é como se, com isso, lá se fossem, elas, carregando pesos e medidas, tempo e espaço, com pedras e pedregulhos, galhos secos, folhas caídas, esse Outono em que, enfim, se transforma a vida. Era o significado daquele ponto final, do clicar e enviar o livro a quem vai cuidar dele: a decisão de viver meu Outono. Enquanto ainda há luz. Uma outra promessa, semelhante a outras que já fiz ao terminar um livro.

Tirei, outra vez, os arreios de meu pangaré, pedi-lhe fosse descansar ao lado dos manacás. E, ao raio-de-luar – que me leva pelas imensidões – deixei um recado: não me tente mais. A luz exterior é de Inverno. Mas, ainda de Outono, é a interior. Não posso perdê-las, nenhuma delas. O que tinha de ser feito já o foi. E, com as coisas, foi-se, também, o tempo de correr, de disputar, de concorrer, de competir. Façam-no os moços; deles, é esse tempo. No Outono, o meu é outro: de ficar, de refletir, de meditar, de ler, de pensar, de contemplar. E de ir-me em busca, também, de uma história que deixou um cordão umbilical como que perdido entre dois umbigos que se não aproximam.

Está, agora, tudo pronto, preparado: fantasmas, acontecimentos, as pessoas, as histórias, a cidade, os lugares. Antes de um Inverno pessoal chegar, preciso narrar o que a luz desse Outono clareia. Vejo um garoto na manhã em que Getúlio Vargas morreu. Aturdido, ele anda pela cidade, vê pessoas: João Chiarini, Espetete, Pedro Carniça, o coronel Luiz Gonzaga, Nhô Lica, a prostituta Estefânia, a agitação no jardim, na praça. Meses depois – noite quase alta – o menino, sob a veneziana da namoradinha, assobia acordes de “Violetas Imperiais”, código para ela, fugidiamente, encontrá-lo na esquina. Quando a vê, ele, com gravidade, lhe revela: “Decidi. Vou ser comunista.” Eles tinham 14 anos. Depois, tudo envelheceu, nós e o mundo.

Ora, já jurei, antes, entregar-me por inteiro a contar a história do que foi visto, ouvido, de como as coisas foram acontecendo em Piracicaba. Já, também antes, falei das mesmas emoções. Agora, porém, não há mais retorno. Pois, ainda há e tem luz. Bom dia

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