Escravos da era digital

Cabeça digitalContinuo acreditando ser, o tempo, imóvel. Logo, não é ele que passa, que se move, mas nós é que passamos por ele. Como a Terra gira, giramos com ela e, assim, vamos passando, minuto a minuto – e anos e mais anos – por ele. O envelhecimento, então, seria resultado do atrito causado por tantas e tantas voltas. Se assim não for, pelo menos é o que imagino.

Penso, então, nas voltas em que o mundo dá. E nas que damos com ele. Sempre há um retorno para o início que, no entanto, jamais será o mesmo. As estações do ano acompanham esse ritmo. Logo, digamos da primavera: ela sempre retorna e sempre continua. E, a cada chegada e a cada retorno, é diferente.

Voltei a pensar nisso por ter ficado mais de uma semana sem internet, vítima dos tais problemas técnicos de operadoras. Senti-me absolutamente impotente, inútil, sem a mínima condição de trabalho. E imaginei uma pane mundial, levando a humanidade novamente à idade da pedra, ou quase isso. Como se vive, hoje, sem internet? Perguntei-me e tive medo ao descobrir que seria impossível o mundo continuar existindo tal como é. E uma pane mundial de energia elétrica?

Pensei, então, em quantas voltas já dei com o mundo. Fiz os cálculos e descobri terem sido quase 370 mil voltas, quase 370 mil dias e noites. Acompanhei e vivi, pois, centenas de milhares de transformações. E uma descoberta admirável mas esquecida: foi possível, sim, viver sem o mundo digital. E foi possível viver sem incontáveis recursos tecnológicos de que vimos dispondo era por era. Hoje, no entanto, ninguém – nem mesmo quem já deu tantas voltas – poderia viver como antes. Aquilo tudo acabou. E se a internet acabar?

Minha vida foi e tem sido escrever. Comecei fazendo-o com lápis e papel. Depois, com caneta de pena, que se molhava no tinteiro. Alguns anos mais tarde, apareceu a caneta-tinteiro, que tinha na Parker 51 seu símbolo máximo. Minha primeira máquina de escrever, manual – e ainda a tenho guardada como um tesouro – eu a ganhei em 1954. Foi minha companheira por mais de 30 anos, até chegar meu primeiro computador, um monstro que parecia um caixão. A partir daí, computadores menores, mais sofisticados, o note-book, os celulares e essa parafernália toda que nos entrou vida a dentro e à qual nos escravizamos.

Lembro-me de quando – há uns 10 anos – um dos meus netinhos, entrando em minha biblioteca, viu, numa das prateleira, a minha amada Olivetti. Ele a olhou, curioso e perguntou: “Vô, o que é aquilo?” Não consegui explicar-lhe que “aquilo” fora a companheira de minha vida, a amiga, a cúmplice, a confidente, aquela na qual eu escrevera todas as minhas dores, alegrias, decepções, sofrimentos. A minha Olivetti soube de minha alma mais do que minha mulher de então e do que meus filhos. Ela soube mais de mim do que, acho, eu mesmo. E, por causa da internet, ela está só e abandonada numa prateleira, em lugar de honra – ao lado de Machado de Assis, de Tolstoi, de Dostoievsky, de Eça, de um universo de sábios – mas esquecida, inútil, tristemente aposentada.

Vivi, pois, a experiência se ficar sem internet por longos dias e noites. Não posso negar: quase enlouqueci. Perdi o contato com o mundo, não tinha como trabalhar, fiquei ainda mais solitário na solidão que escolhi. Dei-me conta, então, que não fui senhor de minha vida em todos aqueles dias. Tornei-me, também eu, um escravo da internet. Eis minha triste, amarga mas verdadeira realidade. Um triste fim para quem – dando voltas com o mundo – nadava em rios, saltava em árvores, andava descalço. E sabia escrever, com os dedos, em areia de praia. Bom dia.

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