Espectar sem expectar

pictureNo final dos anos 60 – minha geração sequer tinha chegado aos 30 anos – as transformações haviam sido tão rápidas que as perplexidades nos assaltaram de maneira ao mesmo tempo paralisante e impulsionadora. Sonhos chegavam ao fim, mas a violência e a tirania despertavam outras esperanças. No palco dos acontecimentos, deixamos, de repente, de ser atores para nos transformarmos em espectadores. Criavam-se vazios, surgia o caos. No palco, os atores eram, também, autores. Eles escreviam e desempenhavam a peça da tirania, mudando-a conforme o humor de cada dia, alterando personagens, textos, adiando sempre o final. Nos espectadores havia um sentimento de impotência. Mas, também, de expectativa.

Naqueles anos, um livro teve, para mim, importância fundamental, leitura que me alimentou a alma: “Reflexões de um espectador culpado”, do admirável Thomas Merton. Eram notas, meditações, observações, pequenas análises. E, no entanto, nelas, Merton – mais uma vez e como sempre – conseguia equacionar a presença do homem no mundo. De sua vida monástica, ele descortinou um olhar generoso e sábio em direção aos tempos. Profeta, Thomas Merton anteviu a chegada do “pensamento único”, do ser humano robotizado, pelo menos duas décadas antes que a tragédia da coletivização acontecesse a partir do Consenso de Washington. E essa era e foi a grande ironia: quando se condenava o mundo comunista de querer destruir a individualidade do homem, foi o mundo ocidental e capitalista quem o fez. Merton enxergou antes. E, sentindo-se espectador culpado, escreveu pensamentos que se tornaram, pelo menos para mim – então, um homem ainda jovem – pilares onde repousar a consciência.

Confesso andar angustiado com o massacre da mundialização econômica, da perda de identidade dos povos, da destruição de culturas regionais e nacionais, do poder absoluto que se deu à Economia. De repente, eis que estamos levados, ainda outra vez, a ser meros e simples espectadores, sem qualquer ação ou atuação no palco da História. Mas a gravidade, penso eu, não está em, novamente, estarmos fora do palco, deixando de ser atores, cada qual sendo simples espectador. A gravidade está em que somos espectadores sem ser expectadores. Vemos o espetáculo sem ter qualquer expectativa. Se, antes, conseguíamos ser espectadores e expectadores, vendo mas admitindo a possibilidade de mudanças, espectadores com expectativas – hoje, a impotência é maior. As expectativas quase não mais existem, não há o que esperar. E aí está a tragédia dos nossos tempos: expectador é o que tem esperança. E nós somos espectadores sem ser expectadores: não expectamos, não temos expectação. Apenas espectamos, olhamos, assistimos. A culpa e o castigo estão em espectar sem expectar. A impotência tem sabor de fim-de-mundo. E, portanto, de recomeço. Pois, quando não há mais esperanças – quando o espectador não tem qualquer expectativa diante daquilo que vê – nada mais lhe resta senão romper com o que existe.

Lembro-me de que Thomas Merton já falava dos “homens bem -pensantes”, os que pensavam de maneira igual, que se comportavam igualmente e que se tornavam profetas, ícones e oráculos do mundo. “Bem-pensantes”, líderes, gerentes. Mas nenhum era um pensador. Falavam para espectadores que obedeciam. Hoje, para cada “bem-pensante” seria preciso haver um pensador. O espectador que voltasse a ser expectador. Basta começar a pensar. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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