Estefânia

picture (36)Nunca mais fui ao “Felicce”, na rua Benjamin Constant. Mas, mesmo quando passo em frente, fico em estado reverencial. O nome “Felicce” é em homenagem a Felício Chiarinelli, o Capitão Felício, que se dizia herói de guerra na Itália, companheiro de Garibaldi. Imponente, bravo, o Capitão Felício parecia estar sempre dando ordens, exigindo obediência, pronto para a próxima batalha. Naquela casa, ele viveu e morreu.

Vi o Capitão Felício morto, impecável no caixão, exposto à visitação naquela casa. Aquela rua, a Benjamin, foi um lugar ainda não descrito e pouco cantado de Piracicaba, universo que precisaria de um Jorge Amado para contar de suas belezas, das frustrações, amores e paixões, crimes e esperanças. Ali, bem grudadinho ao centro, era a zona boêmia da cidade. Lá estava a “Pensão Royal”, na rua Voluntários, freqüentada por políticos e coronéis, bem ao estilo dos fazendeiros de cacau narrados por Jorge Amado. Na “Pensão Royal”, houve crime de morte.

Passo por lá, sou encantado por fantasmas. Era, sim, zona de meretrício. Mas lugar de respeito. Durante o dia, as mulheres da boêmia viviam naturalmente ao lado das mães de família, como se a pobreza de todas elas, prostitutas e donas de casa, as unisse. Zinho Muié, o homossexual mais famoso, era manicure, pedicure e cabeleireiro das prostitutas. A Rua Benjamin clama para que lhe recuperem a história. .

Há pouco tempo, um jovem intelectual – moço inteligente, estudioso – falou-me: “Quando você escreve com tanta ternura sobre as prostitutas, eu fico com saudade, como se as tivesse conhecido. E com vontade de conversar com elas.” Ora, sobre elas, desde criança, lancei um olhar de escritor. Vi, nelas, o verdadeiro da humanidade. O Capitão Felício, da brigada de Garibaldi, impunha respeito e todos o obedeciam. E foi na Rua Benjamin que imperou, gloriosa e vivaz, Estefânia Sampaio.

Ora, ando com medo. Pois conheço os mistérios terríveis da criação. As idéias vão chegando em fiapos. Insinuam-se. Engravidam as pessoas. Estefânia Sampaio já está dentro de mim, como se eu a estivesse gerando, um romance querendo nascer. Estefânia, líder comunista, valente, fiel aliada de Luiz Carlos Prestes, organizadora de passeatas, doutrinadora de porta de fábrica.

Foi em 1961, na “Folha de Piracicaba”, recém-surgida, na esquina da lendária Rua Benjamin. Véspera de eleições. Estefânia apareceu na redação, já velha, o rosto pálido empoado com talco, marcas de ruge, lábios vermelhos. Ela queria divulgar um manifesto. E os tempos eram preconceituosos. O jovem redator não sabia o que fazer. Para ganhar tempo, o rapaz perguntou que cabeçalho deveria dar, manifesto de quem contra quem?

A conversa não se desenvolvia. Tomei o papel na mão, li, sugeri: “Vamos publicar como ´Manifesto das Prostitutas´, tá bem?” Estefânia ficou possessa, fulminou-nos com o olhar. Parecia “La Passionaria”, a fúria nos olhos. Quase me esfregou o papel no nariz:

– Olhe aqui, moço. Essa história de prostituta, de meretriz, isso é coisa de imperialista. Nós somos putas mesmo e temos orgulho disso. O nosso é o “Manifesto das Putas” em favor de Adhemar de Barros e contra Jânio Quadros, o tarado que fechou a zona em São Paulo.

Quando passo diante do “Felicce”, emociono-me. E bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

Deixe uma resposta