Estefânia, Neguito, Nhô Lica…

picture (78)Se já delirei em torno dessas coisas, desculpem-me. Delírios vão e voltam. Pensar embriaga. Lua, mudando, também. Tudo são embriaguezes: olhares e veres, escutares e ouvires, tocares, sentires. Coisas triviais, como rimas de amor. Por que, então, escrever delas? Ora, desaprendi a ler nas estrelas. Logo, hei que escrever no papel, no muro, na parede, na árvore, num pedaço de chão, um bilhete, um risco. Nas trivialidades, aparece, com mais clareza, o “mysterium tremendum”.

Da foto de minha avó – gorda, o colo salpicado de jóias – o olhar esbarrou na de meu tio, olhar faiscante de poeira do deserto. A partir deles, um quase cansaço, como que, novamente, a aceitação de um destino, milenar certeza árabe: está escrito. Tudo. E escrito nas estrelas. E, na perplexidade da contemplação, revela-se-me a absurdidade da vida na trivialidade das coisas. É o fascínio de cada instante. E o escritor, o poeta, o músico, o pintor e o escultor – ora, não seria, cada qual, compositor do banal? Monet, a partir de um prosaico cesto de maçã e banana. E cada fuga de Bach é um arabesco. Adorno. Ou adereço. Quantos somos os que vemos e ouvimos?

Ao mesmo tempo, nada importa e tudo é importante. Ora se vive simplificada, ora complicadamente. Para alguns, terremotos e dilúvios são simplicidades. Para outros, um calmo soprar da brisa é complicado. O simples é complicado. Canso-me já de insistir em obviedades. Debruço-me, então, em Proust. E ainda não sei se, em minha vida, houve algum tempo perdido. Por isso, buscar é preciso.

Aprendi a ver, ouvir e sentir coisas a partir do que sempre pareceu irracional. E com pessoas tidas como passionais. Cito duas ou três, podendo lembrar de dezenas. Penso em Nhô Lica, em Júlio Bruhns, em Neguito. Referenciais permanentes. Ou em Neidona, em Vassourinha, em Felpudo. E em Estefânia, em Ruth. E em Newton de Mello, no dr.Cera, em Cobrinha. E em Ary, Elias e Idiarte. E em Cardoso, Straus e Adolfinho. E em De Maria, Sato, Picolino, Gatão e Rabeca. Quando vejo ou me encontro com viúvas de alguns dos nossos grandes homens, beijo-lhes as mãos. Mas ando beijando cada pedaço de terra, cada pessoa, cada flor, cada bichinho – nada e ninguém percebem, culpa minha.

Tentei falar para amigos queridos meus que devo estar ressuscitando. Pois já morri de quase todas as coisas. Pareço novinho na alma. E como que ouço Neguito falar de Jorge Amado, de “Orfeu do Carnaval”, de Vinícius, de Chico, de mundos surgindo, de mundos morrendo. Ele falava “au revoir”, ao ir-se embora; Neidona, deusa etíope, suada e suspirante, sorria para o porta-bandeira, grata por toda a mercê: “Merci”, dizia-lhe. Estefânia chamava cada amigo comunista de “mon amour”. Hoje, as pessoas não se vêem ou, então, se xingam. Entender, quem há de? Mas, saber, para quê? Bom dia.

(Ilustração: Mulata, Di Cavalcanti.)

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