Estrepolias de avós

picture (59)Não se deve mexer com fantasmas. Nem em sótãos. Muito menos em fundos de baús. Pessoas sequer deveriam, penso eu, olhar debaixo de tapetes. Muito menos espiar por frestas de cortinas ou através delas, se forem véus transparentes. Quem procura acha.

E cartas antigas, estas também não devem ser lidas, especialmente se deixadas em caixas de sapatos, empoeiradas, esquecidas. Pois cartas sobrevivem aos mortos que as escreveram ou aos que as receberam. Nelas, sempre haverá pelo menos uma confidência desoladora. Ou a decepção de descobrir ter sido apenas banal o que se contava como deslumbrante.

Matar mitos faz mal à alma. E toda história familiar, com seus ramerrões cotidianos, é mítica por força de grandezas generosas e de formidáveis misérias. Pois são estas, as misérias humanas, as que mais nos aproximam um dos outros.

Dos fantasmas de minha família, os que mais me fascinaram sempre foram os “à gauche”, a partir dos narizes empinados de velhos árabes metidos a emires e reis tribais. Está comigo, até hoje, um espelho dourado que, segundo a lenda familiar, veio de Beiruth, passando por Paris, instalando-se em Buenos Aires, assossegando-se em Piracicaba. Por mais de um século, o espelho viajou no lombo de camelo, de navio, de trem e de ônibus, terminou comigo. Há toda uma heráldica familiar. E, no entanto, o que me fascinava não era saber de bispos ortodoxos da família, de senhores de terra, de damas árabes cobertas de jóias, de intelectuais, de políticos de destaque, de fortunas desaparecidas, de pobreza repentina. Fascinavam-me histórias dos parentes postos à margem, como se nunca tivessem existido, silêncios envergonhados. No rebanho, eram tachados como ovelhas negras. E, de minha parte, sempre achei encantador ver ovelhinhas negras pastando ao lado de ovelhas brancas demais, alvas demais.

São caixas de Pandora que as famílias nunca deveriam abrir. Mas quem controla a curiosidade alheia? Já me acontece com os netos. Eles começaram a escarafunchar tudo, arquivos, caixas, baús, pacotes fechados, procurando histórias da ditadura, documentos e processos do Deops, provas do “vovô herói”. E eu tremo. Pois não segui o conselho de Rilke ao jovem poeta – “nunca escreva cartas de amor” – e eu as escrevi, muitas, centenas. Onde estariam? Com quem ficaram? Será que, rompendo o código de cavalheiros – de destruir as cartas da mulher amada após o término do amor – alguma ficara escondida, perdida? Por que meus netos inventaram de remexer baús, de espiar por frestas?

Ora, netos nunca acreditam possam, os avós, ter amado ou que ainda amem. Somos como que múmias ou almas desencarnadas. Os meus garotos já encontraram pétalas secas de rosas marcando páginas de livros. E fotos de jovens com fitas nos cabelos. E encontraram páginas borradas de lágrimas. Então, aconteceu. O netinho mais bisbilhoteiro encontrou um bilhete, amarelado, marca de lábios impressos em batom, num beijo. Estava escrito: “Querido. Deixarei a janela do quarto só encostada, a luz do abajur acesa. Não faça barulho.” A data: 1958. Tínhamos 18 anos.

O netinho esticou os olhos, malicioso: “Quem era vô? “ E ele aprendeu: um cavalheiro não revela segredos e mistérios passados. Não se deve, pois, reavivar fantasmas. Nem remexer em velhos baús. Como explicar que escalávamos muros, pulávamos cercas, saltávamos janelas? Lá, isso, são estrepolias de avós respeitáveis? Bom dia.

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