Fazer a hora, fazer hora, matar tempo, descansar

picture (16)Começo, mais do que mereço, a entender coisas. E, também, mais do que, talvez, seja preciso. Quase nada, do tudo, entendo. E, ao mesmo tempo, muito, do quase nada, começo a entender. E a conclusão se me vai descortinando cada vez mais ampla, serena, acho que sábia: não há necessidade de entender nada de quase nada. E, ao mesmo tempo, importa a busca de tudo desse tão pouco que parece restar. E é o segredo: o pouco, que se encontra, vale pelo tudo inalcançável. Quem conseguir compreender que o compreenda. Pois compreender não é entender. E entender não é compreender.

Sepultar seus mortos queridos foi a atitude, na longínqua Antiguidade, que determinou a humanidade dos humanos. Amamentar os filhos, cuidar deles, dar-lhes proteção, organizar um grupo – nada disso foi tão significativo para construir uma humanidade solidária, pois os bichos também o fazem. Quando o homem, diante de seus mortos queridos, começou a sepultá-los, a dar-lhes um espaço de descanso, um lugar sagrado de recolhimento, eis então e quando a humanidade começou a se revelar em seus sentimentos de solidariedade, de familiaridade, de altruísmo.

A sepultura foi o espaço sagrado que escolhemos para os nossos queridos, a terra para onde se volta, o “húmus” do humano, a poeira de estrelas que retorna à sua origem. E uma frase latina, no mundo ocidental, acompanhou os nossos falecidos, falada como oração ou registrada em pedra: “requiescat in pace”, descanse em paz. Antes da morte, a expressão do salmista referia-se ao sono. Entendeu-se, então, haver o sono eterno e o descanso eterno.

O que comecei a entender, no mistério de tudo isso, é o sentido do descanso. Quando o povo diz, diante de seus mortos, que eles “descansaram”, há uma sabedoria milenar nessa observação. Um “réquiem” é o canto do descanso. E, se melhormente e mais amorosamente pensarmos, haveremos de entender que as pessoas – tirando a morte inesperada, vidas ceifadas pela violência, pelo acidente – acabam, diante do sofrimento e da dor e da doença, cansando-se de viver. Cansadas, morrem. Morrendo, descansam. Logo, morrer é a forma talvez definitiva de descansar do cansaço de viver. Pois a vida, com tantas maravilhas e belezas, se torna, realmente, o vale de lágrimas, de dores e de sofrimentos. Quando nada mais há pelo que viver, cansa-se, desiste-se.

Nunca tanto pensei nisso como nesses últimos dias de doídas perdas: Tiquinho, Malavolta,e meu querido amigo de infância e de adolescência, companheiro de escola, o Leopoldo Gobbin, o tímido e recolhido Leopoldo, de inteligência e coração ímpares, encasulado em sua alma generosa que as ruas de Vila Rezende acolheram ainda em suas calças curtas. Eles cansaram-se de viver, desistiram, uma certeza de tempo vivido, de história concluída, de graças recebidas.

O homem do povo – nessa ancestral sabedoria de viver – costuma dizer, quando ocioso, que está “fazendo hora”, que está “matando o tempo”. É fantástico, admirável: a vida do homem é a luta para “fazer a hora”, a sua hora. E para “ viver o tempo”, o seu tempo. Quando tudo se vai acabando, aquele que “fez a hora”, apenas “faz hora”; o que viveu o tempo, “mata o tempo”. E – descobrindo-se num tempo e num mundo que não são mais seus – cansa-se e quer descansar. Pessoas descansam quando se vão, é verdade.

Sinto-me, na solidão que se amplia, cansando-me. E, de uma certa forma sutil, “faço hora”. Só ainda não consigo “matar tempo”. Bom dia.

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