“Fazer porcaria…”

Decidi proibir-me de entrar em livrarias, em galerias de arte, em antiquários e em lojas que vendem bonequinhos de terracota, sei lá do quê, tipo biscuits. Fui colecionador compulsivo. Tenho, de bonequinhos – especialmente palhaços – algumas centenas que minha mulher, agora, resolveu ir colocando em pedras de jardim, em vasos.

Quando os netos eram pequeninos, eu os chamei, em fila, para olharem fixamente as minhas coleções. E lhes perguntei se sabiam que turco – poisnão entenderiam a babilônica ascendência nossa, de sírios-libaneses, gregos e turcos, uma confusão das Arábias – é comedor de criancinha. Igualzinho comunista, dizia. Eles arregalaram os olhinhos e, então, lhes pedi que estendessem as mãos e mostrassem os dedinhos. Falei: “Vovô adora comer dedinho de criança bem assado. Se vocês mexerem nos bonequinhos, eu corto seus dedinhos, ponho na assadeira, asso e como.” Eles esconderam as mãos, quase saíram correndo. Mas o fato é que nunca mexeram em meus bonequinhos. Para se ver, pois, que nem sempre é ruim educar amedrontando, ulalá.

Essas coisas, contei-as como intróito por ter estar tomado por nostalgia dos meus tempos e de minha turma, alunos externos de colégio salesiano. Era uma delícia. Tanto rigor havia que o prazer maior era o de burlar as regras, enganando ou tentando enganar os padres. E havia uma delícia especial: o dia de confissão, sempre aos sábados. Um clérigo ia às classes e ordenava que, sempre em fila, os alunos fossem se confessar. Teríamos lá pelos nossos l0, 11 anos. Um amiguinho querido, sempre angustiado, perguntava-me que pecados tínhamos para contar. Eu também não sabia mas sugeria inventarmos algum. Ele concordava, mas em dúvida: olhar pelo buraco da fechadura nossas primas ao banho era pecado? Para mim, era, no máximo, falta de educação.

Confessor terrível era um padre muito idoso, cego e quase surdo. Por isso mesmo, era preferido da molecada. O problema, no entanto, é que, pela surdez, ele falava alto, forçando-nos a também quase gritar para ele ouvir. Logo, todos sabviam das confissões de todos. Dizem ter sido, ele, um santo, Deus o tenha. Ele esmiuçava os pecados da criançada: mentiu, desrespeitou pai e mãe, não fez a lição? E uma pergunta sempre especial: “Fez porcaria?” Eu não sabia o que ele entendia pela tal porcaria. Mas, se eu admitisse tê-la feito, ele perguntaria: “Sozinho ou com quem?”

Num sábado, lá me fui eu empurrado a confessar, mal sabendo o que dizer ao padre surdo. A pergunta clássica surgiu sem eu, aos 10 anos, saber do que se tratava: “Fez porcaria?” Hesitei, mas me lembrei e apressei-me a confessar:” Fiz, sim senhor.” E ele: “Sozinho ou com quem?” E eu: “Eu com a turma toda.” E ele, assustado: “Com a turma toda, como assim?” Então, contei para o santo homem que, jogando futebol num pasto, decidimos catar cocô de cavalo e, como numa guerra, jogando uns nos outros. O padre indignou-se: “Não é de bosta de cavalo que estou falando, moleque burro. É de outra porcaria.” E me mandou embora com a penitência de rezar um Pai Nosso e três Ave Marias. Não entendi mas rezei.

Sinto que, no mais fundo de mim, ando, mesmo, com saudade de pecado. Ah! como era tentador, instigante, saboroso provar do proibido. Quando as portas das casas estão escancaradas, ninguém se interessa por atravessá-las ou por elas espiar. Se está tudo à vista, o que há mais para ver? No entanto, se houver apenas frestas, a curiosidade se aguça e a tentação de espiar é quase incontrolável. Minha geração foi a mísera responsável pelo “é proibido proibir”. Ora, se nada mais é proibido, que graça pode haver na aventura, no desafio, na audácia, na transgressão? Por nada mais ser proibido, a corrupção se tornou uma verdadeira cultura. Com todos os tipos de sujeiras. Nem pais-nossos e ave-marias servem mais como penitência.

Por isso, boquiabro, ainda hoje, com a milenar sabedoria da Igreja Católica. Não falo em fé, mas em respeito. Nenhuma instituição, como ela, conhece a alma humana em seus mistérios, belezas e feiúras. Por isso, sabe abrir e fechar, radicalizar e flexibilizar, conciliar opostos sem nivelá-los. Entende de ódios e de amores, de céus e infernos, de santos e pecadores, de Deus e do diabo. Sem inferno não há céu. Sem o diabo não há deus. Prêmio e castigo, consolo e purgação, regras pétreas e móveis, idas e vindas. Não é assim, o ser humano?

O que não entendo é tanta gente ir a psicólogo, a analistas, a terapeutas, quando o confessionário é grátis e revigorante. Deixam-se os pecados com o padre, rezam-se as rezas e começa tudo de novo. O problema está em não haver mais pecado. Nem porcaria.

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