Ferro antigo e embelezar feiúras

picture (23)Numa casa de quinquilharias, vi um daqueles antigos ferros de passar roupas, que funcionavam com carvão e brasas. Comprei-o, levei-o para casa. Meu pessoal estranhou a peça sem utilidade. Mas, pelo meu olhar, o ferro serviria como enfeite. De uma certa forma, porém, confirmava-se o entendimento de que coisas e pessoas, após seu tempo de brilho, não sobrevivem se não cumprirem novas funções.

Quem conhece, hoje, um motorneiro de bonde na ativa? Quem já viu um daqueles ferros de passar roupa ainda funcionando com brasas e carvão? Ora, se o ferro perdera a serventia original, poderia tornar-se um belíssimo vaso de flores ou, tão só, um objeto decorativo, estético, num canto de minha sala. Logo, o ferro, inútil para passar roupas, sobreviveria ao cumprir sua nova função: a de embelezar.

Pensei nisso quando vi o que um netinho e amiguinhos dele deixaram-me no computador, após navegarem pela internet. Era como se os garotos tivessem descoberto cursos inteiros de pornografia, imagens que, confesso, eu não vira antes, em muitos anos de leitura. “Coisa feia”, falei de mim para mim.

Falei e boquiabri. Pois, se me confirma, cada vez mais, estarmos num tempo e numa civilização quando e onde não mais há “coisas feias”. E, também, por sentir que o viver de minha geração talvez tivesse sido mais sedutor pelas tantas “coisas feias” que fomos obrigados a desvendar, a romper, a enfrentar, tornando-as bonitas. Foi um ciclo: o feio ficou bonito, mas o bonito enfeiou-se. Como o ferro de passar roupa, minha geração parece não ter conseguido dar-se outras funções e cá estamos, agora, perplexos e aparvalhados, como aparvalhados e perplexos tinham ficado nossos avós. Qual é a função, hoje, dos que tanto ainda cantamos belezas de “anos dourados”?

Quase tudo era “coisa feia”. Sexo, também. E o nosso desafio foi alcançar o quase milagre de transformar a “coisa feia” em algo maravilhoso, vívido e realmente sagrado: a sexualidade exercida com respeito. Foi como tirar pérolas de lixeiras. Pois “coisas feias”, estas havia em abundância. Era “coisa feia” desrespeitar pai, mãe, professores. E dizer palavrões em público, cuspir, xingar. “Coisas feias”: comer depressa e de boca aberta, falar alto e aos berros, xingar, fazer barulho, expansões sexuais públicas, desrespeitar filas, perturbar em teatros, cinemas e em recintos fechados, rabiscar paredes, fazer gestos e atos ditos obscenos. Na verdade, “coisa feia” era tudo o que afrontasse as normas de civilidade e, portanto, do respeito em relação ao outro. Dizer-se civilizado era um orgulho. Hoje, há quem se orgulhe de imitar bárbaros.

Minha geração – querendo abrir o fechado – escancarou. Perdemos os limites na busca de uma liberdade que não sabíamos definir. Éramos mais contra tiranias do que a favor de direitos. Nos atropelos, profanamos o sagrado e não nos demos conta do erro. Ou nem sequer sabíamos que coexistissem, o sagrado e o profano.

Ora, é possível transformar um velho ferro de passar roupa em peça formosa, catita. Logo, possível também é homens e mulheres de minha geração exercermos novas funções. Já vivemos nossos verões e primaveras, restando-nos, agora, sabores dos outonos e expectativa de invernos imprevisíveis. Não tem sentido pretendermos florir como Primavera, aquecer como o Verão. O Outono da vida é tempo de ficar, época de frutos. De colhê-los e de dá-los.

Falta a sabedoria de dizer que, no mundo e na vida, ainda existem “coisas feias”. E, depois, revelar o belo. Pois embelezar a feiúra é preciso. Bom dia.

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