Ficha limpa, raposa e galinheiro

Raposa e galinhaO Brasil tem-se mobilizado para convencer deputados e senadores a aprovar um projeto buscando restabelecer a ordem moral na política nacional. Uma das virtudes da Constituição brasileira em vigor foi criar a possibilidade de o próprio povo – cumprindo pressupostos e exigências legais – apresentar projetos que pretendam ser de interesse nacional. Trata-se de uma abertura saudável mas também perigosa, inegavelmente, porém, democrática. Pois nada impede que multidões – se instrumentalizadas – se organizem na tentativa de legalizar modismos ou até mesmo degenerações sociais.

O projeto conhecido como “Ficha Limpa”, no entanto, é – ou deveria ser – do mais alto interesse nacional, pois implica o esforço para se moralizar instituições político-partidárias que fugiram às suas responsabilidades e à sua própria genética. O poder político é, primacialmente, um bem, uma criação humana destinada ao serviço das comunidades, dos países, numa evolução que já é milenar. No entanto, política – como qualquer outra vertente de poder – carrega, também, em sua gênese um mosaico de apetites, interesses e desejos nem sempre moralmente justificáveis e, portanto, dignos. No Brasil, a decadência moral da ordem política ultrapassou os limites da tolerância e não há necessidade de se citar exemplos ou de lembrar ocorrências para comprovar o colapso e a falência da classe política brasileira como um todo. E ainda outra vez, insisto: há exceções, sim, mas elas deixaram de ter importância, tão pouca a sua influência, tão frágil a sua existência.

O que a Constituição – ao permitir a manifestação do povo na elaboração de projetos de lei – não previu foi essa falência da classe política. Pelo contrário, no embalo do entusiasmo pela redemocratização do país, os constituintes partiram do pressuposto idealístico: um país ideal, uma classe política ideal, um povo ideal. E não fechou brechas para a invasão destruidora de oportunistas e de corruptos que, ao final, se revelaram senão a maioria, pelo menos uma quantidade de poderosa influência.

Pois bem. O povo – por milhares de assinaturas, ultrapassando o milhão delas – pede que, para ser candidato, o pretendente tenha, em resumo, “ficha policial limpa”. Nada mais óbvio, nada mais simples, nada mais normal ao cotidiano das relações humanas. Ora se, até mesmo para se contratar uma faxineira, exigem-se referências, informações, um currículo decente de vida – por que não exigi-lo de quem representará o povo nas mais altas instituições do País? Isso que seria normal passa, no entanto, a ser complexo quando se sabe que muitos dos que irão ou iriam votar o projeto podem ser as grandes vítimas de uma limpeza ética no Congresso Nacional. Um exemplo, um só, mas que se vai tornando simbólico no Brasil: como pretender que um Paulo Maluf – proibido de entrar até mesmo em outros países por denúncias de corrupção – vote contra si mesmo?

Há um vício de origem, portanto, na beleza e nas belíssimas intenções desse projeto: o povo está querendo que a raposa cuide do galinheiro, quando o objetivo é exatamente evitar que raposas continuem devorando as galinhas de ovos de ouro deste país. Talvez, além de Executivo, Judiciário e Legislativo, o Brasil esteja precisando de um outro poder, o Poder Moderador – que coloque a casa de mãe Joana em uma ordem mínima, ainda que com as prostituições reconhecidas, também inerentes ao poder político. Mas isso já é sonhar demais. Bom dia.

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