Fidelidade verdadeira

Ser e sentir-se humano é experiência inexcedível. Quanto mais se erra, mais se aprende. Quanto mais se cai, mais se aprende a andar. E a invenção do pecado, penso eu, é uma das aventuras mais admiráveis da existência humana. Pecar é descobrir que anjos compõem outra história e, para azar deles, são-lhes desconhecidas delícias muitas vezes difíceis se relatar. De minha parte, peco por pensamentos, palavras e obras. E, em referência aos pecados capitais, já os cometi todos, alguns de maneira mais acentuada.

Esse ir e vir, esse terminar e recomeçar acabam compondo a história de cada um. Para mim, espanto-me quando, pensando mais seriamente, me vejo sendo apenas um ex. Sou ex-comunista, ex-cristão, ex-ateu, ex-marido, ex-solteiro, ex-empresário, ex-político, ex-professor, ex-advogado, estou à beira de ser, também, ex-jornalista. Ser ex quer dizer que já se foi.

A formidável questão da fidelidade é uma dessas pantomimas que, sem sentido lógico, atravessam gerações. Agora mesmo, na televisão, um casal de idosos aparece com uma doçura cativante e ele, amorosamente, fala para a mulher: “Em 50 anos de casados, eu nunca a trai.” Ela, espertamente, nada responde, levando-o a ver o automóvel novo que está na sala. E a conversa da fidelidade termina na admiração do carro novo.

Prefiro, à palavra fidelidade, lealdade. Ser fiel é muito complicado, pois a vida ensina lições inesperadas, aprende-se e desaprende-se, acredita-se no que se não acreditava, deixa-se de acreditar no que se acreditava. Quando comunista, fiel ao partido lá me via, eu, acarinhado pelos companheiros e detestado pelos não comunistas. Quando deixei o comunismo, passei a ser traidor da causa para os velhos companheiros e quase um herói para os antigos adversários. Ora, Calabar foi traidor para alguns e herói para outros.

Na verdade, quando se coloca a lealdade em primeiro plano, não há qualquer necessidade de trair, de enganar, de ser infiel. É chegar e expor: acabou, não dá mais. Ou expor razões da crise, das dúvidas, dos conflitos, por mais doídos sejam. Quando se deixa de acreditar, deixa-se, como no amor, de ter razões para prosseguir. No entanto, o que estou querendo dizer, ainda outra vez, é mesmo sobre fidelidade. E, próximo de ser septuagenário, sinto-me orgulhoso, vaidoso, todo pimpão em confirmar, para mim mesmo, que sou um homem fiel, que posso dizer como aquele velhinho da televisão: “Meu amor, em quase 70 anos de existência, eu nunca traí você.” Refiro-me, obviamente, ao Corinthians.

Sei ser difícil entender, mas a paixão corintiana está acima de qualquer forma de razão, de qualquer lógica, um sentimento de tal forma avassalador que, para o corintiano, é praticamente impossível livrar-se dele. Xinga-se o Corinthians, sofre-se com ele, há momentos de insuportável rejeição, mas a fidelidade é visceral. Quando nos chamam de maloqueiros, sinto-me à vontade, fico aliviado de pesos de máscaras e de farsas. Pois apenas maloqueiros conhecem essa paixão que se não substitui, essa fidelidade total, plena, absoluta. Por isso, se já foi ex em quase tudo, jamais fui e jamais serei um ex-corintiano. Não consigo.

Lembro-me quando, em 1977, abandonei meu jornal, família, mulher, filhos e, por uma semana, acompanhei o Corinthians na saga de ser campeão após 22 anos de jejum. Vejam: que amante suporta 22 anos de abstinência? Corintiano suportou. Lembro-me, em 1957 – quase à véspera da Copa do Mundo de 1958 – quando a seleção brasileira fez um amistoso, no Pacaembu, contra o Corinthians, pouco antes de embarcar para a Suécia. Pelo Corinthians, torci contra a seleção. Naquela noite, o nosso meia Luizinho, o Pequeno Polegar, nos pareceu infinitamente melhor do que Didi, Pelé e Garrincha. O Corinthians é uma doença, uma enfermidade, um vício.

Neste ano do Centenário, já avisei mulher, filhos, amigos, o escambal: o Corinthians em primeiro lugar, de forma absoluta. Em dia de jogo, não quero ninguém a meu lado, não atendo telefone, não recebo visitas nem mesmo de filhos ou netos. Até em jogo amistoso. E, por fim, Deus haverá, ainda, de dar a graça de ser corintiano a palmeirenses e são-paulinos. E, então, eles irão dormir pensando na escalação do time, em quem deve jogar ao lado de Ronaldo, se o meio do campo está bem armado, delírios que fazem a vida ficar mais bonita. Ser corintiano, pois, é conhecer a plenitude da fidelidade. Por mais idiota isso pareça, é assim mesmo e não há o que se fazer. Bom dia.

Deixe uma resposta