Flor de quem se vai.

Acho que nunca vi um miosótis. Sei que são flores pequenas, vistosas, mutantes, de róseas para azuis. Então, penso ter, em meu jardim, miosótis. Pois há trepadeiras que, insinuando-se por meus caramanchões, ora são brancas, ora róseas, ora azuis. Seriam miosótis? Não sei. E não quero sejam.

Vou evitando saber como e o que são miosótis por ter decidido viver, até o fim, um sonho. E não sei mais se foi sonho de personagem de livro meu, se fui eu mesmo no personagem. Sei ter sido sonho. Que ficou. O personagem – num momento sei lá mais se de dor, se numa agonia final – colheu miosótis e os deixou à mulher amada. Ou os recebeu dela. Tudo é tão próximo que nem me recordo bem. A dor, no livro, é tal e agônica – como é embriagante o prazer – que ela e ele se transformam em mortos-vivos, sonâmbulos, trôpegos de amor. Morrem e não sabem.

Então, ele ou ela – na agonia do ir-se, no mergulho no nada, entre céus e infernos – então, um dos dois vai colher miosótis para deixar ao outro. Quem morre, quem se afasta, quem se vai quer deixar – sem nem sempre conseguir fazê-lo – miosótis aos que amou. Pois, quase sempre, sobram apenas espinhos e amargor, dores e decepções. Mas, quando nada mais resta a fazer – e se todas as outras flores já murcharam – um miosótis pode ser o único de si mesmo que se deixa. Por isso, talvez, penso nunca ter visto um miosótis, não querendo saber o que e como seja. Saber tampouco quero: se os tenho em meu jardim e os ignoro. Pois miosótis é flor de quem se vai. Flor de um pedido. Flor de uma desculpa, talvez.

Ora, não sei se culpo ou agradeço os ingleses. Eles é que deram, ao miosótis, o nome saudade: “forget me not”. Eis aí, o sentido dos miosótis deles, o que eles estão querendo dizer, ou dizem, mesmo sem o querer: “ não se esqueças de mim, não me esqueças” Miosótis, um “forget me not” deles, um “não me esqueça, amor”. Ora, isso é um adeus. E – pelo menos no que sinto – um pedido de desculpas. Ou busca de perdão.

Alguém me falou, certa vez, não ter desculpa alguma a pedir seja a quem for. Não acreditei. Pior ainda: tive medo de que fosse verdade. Porque, verdade fosse, eu estaria diante de um humano com coração de pedra e alma de aço. Não, nem isso. Pois pedras há que, quando rolam, parecem pedir desculpas por terem saído de seus lugares. E o aço verga e o aço pode ser modelado. Se a alma humana não tem desculpas a pedir, se um coração humano não tem súplicas de perdão a fazer – haverá, então, os que passam pela vida sem merecê-la. Pois viver é desculpar-se dia a dia, a cada minuto. Desculpar-se por desamores, por cóleras tolas, por desprezos inumanos. É pedir perdão pela ausência de compaixão, pela misericórdia desaparecida. Pela lágrima que se não chorou. Pela dor não compartilhada.

De mãos vazias, vou-me desculpando pelo vazio das mãos. E vou em busca de miosótis no meu jardim. Não sei se os tenho. Sinto ter medo de tê-los. Pois a minha – tão cansado ando, a exaustão tanta – é a vontade de sair por aí entregando miosótis, deixando-os em cada janela, em cada veneziana, em cada travesseiro, em cada lençol: “forget me not”.

No entanto, no entanto, vejo – ao longo e ao final da jornada – tantas tolices feitas, tantos desencontros – que penso entender: não quero encontrar miosótis no meu jardim. Pois, aos que magoei e feri, eu queria, deles, apenas se esquecessem de dores que causei. Ser-me-ia intolerável vê-los com um meu miosótis na mão, dizendo-me: “não esqueço a dor que senti”. Sei que eu não suportaria. Bom dia.

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