Freiras, morangos, tomates.

Pouca gente entendeu quando, ao vender O DIÁRIO – já nos lá distantes 1982 – despedi-me dos leitores revelando minha nova opção de vida: eu iria ser jardineiro. E fui, estou sendo. Pois, cansado de e desiludido com tantas lutas estéreis, eu havia descoberto que, muito mais importante do que o sonho de um mundo melhor para todos, era a conquista do meu mundo interior, pessoal. E o jardim a que me referi não era, apenas, o de um lugar, da casa, um espaço florido e vívido de plantas e flores. Além dele, eu me propusera a construir o meu jardim interior, com valores que me estavam sendo roubados e atropelados.

Para muitos, foi um recolhimento do cansaço e da desilusão. Para mim, mais do que isso, foi a descoberta da esperança e dos mais belos sentidos da vida. Pois entendi que o ser humano está além do concreto da vida e do mundo, maravilhosamente instalado na sua dimensão espiritual, interior, contemplativa. E é isso – recolhimento e contemplação, revisão de valores – que pode lhe permitir a descoberta do imenso significado de ser e de estar vivo. Contingências históricas são apenas contingências. Na transcendência está a descoberta do Graal de cada um.

Construir jardins é trabalho fascinante, mas árduo. Hão que ser cuidados dia a dia, hora a hora. Na terra física, surgem ervas daninhas que precisam ser extirpadas. E, na terra da alma, espinhos que precisam ser arrancados. E dói arrancar espinhos da alma, pois eles se arraigam e produzem ranços, venenos mortais se não enfrentados e vencidos. Faina árdua, mas profundamente gratificante e alentadora quando se começam a colher frutos. Pois, de repente e quando menos se espera, surgem flores, brotam mudas, aparecem frutos. Na terra da alma e no solo, no húmus, que – insisto para eu mesmo nunca me esquecer – é a origem da palavra homem. Homem é o húmus, húmus é o homem.

De meu jardim da alma, rendo graças pelas descobertas que ainda faço, na recuperação do que pensei estivesse morto, na redescoberta do que eu me esquecera e, enfim, na certeza de que a paz e a harmonia existem, exercício de cada dia. E, do jardim da casa – na escolha de que seja caótico como a própria natureza em sua harmonia singular – apenas ajudo a retirar o feio e a recolher o belo. Minha mulher, com mãos mágicas, semeia, planta, organiza, descobre mistérios e segredos ocultos.

Ela decidiu criar um espaço para suas ervas aromáticas, as que encantam com o perfume e o sabor. E plantou tomates e morangos e parreiras de uva e maracujá, além das abóboras que nascem, do milho que surgiu, abrindo espaços entre árvores e plantas.

E lá me fui eu, após tanta chuva, ver se tomates e morangos – que despontavam – haviam nascido. E vi morangos e vi tomates, milagrosamente sobreviventes dos intensos temporais. E pensei nos céus, na vida misteriosa que não entendo, em bênçãos da natureza, na comunhão do homem com a vida que explode diante de nossos olhos.

Ao apanhar o morango e ao colher tomates, sou avisado de visitas inesperadas. São duas freiras, desconhecidas minhas, que se anunciam para me trazer uma mensagem. Contrafeito – pois interrompido na magia da colheita, em especial o primeiro moranguinho que nasceu – vou recebê-las, as mãos ainda com a terra molhada, a barba por fazer. E as freiras me sorriem, tão jovens que, parecendo adolescentes, hesito em chamá-las de senhoras ou senhoritas. Dizem-se mensageiras, missionárias.

E, então, vejo, nos braços de uma delas, a imagem linda e cativante de Nossa Senhora de Fátima. As freiras me pedem, apenas, que eu lhes permita recitar, por mim e minha família, uma singela Ave Maria. Sobre a pequena mesa antiga – onde estão fotos de ancestrais e pessoas queridas – lucila a minha vela de cada manhã, na sugestão de um oratório ou de um altar. As freiras colocam a imagem de Maria, a de Fátima, ao lado da que me foi dada por D.Aníger, a Aparecida. São duas Marias e são a mesma. Então, elas nos convidam – a mim e á governanta – a orar juntos.

Quando percebo – as mãos ainda com cheiro de terra e de morango – estou balbuciando junto a Ave Maria. E entendi, então, que nada mais fazia do que continuar a oração que, sem palavras, eu fizera no jardim, colhendo tomates e morangos no pedaço do chão. Senti-me, enfim, jardineiro de verdade. Na terra e dentro de mim. Com a certeza de que nada acontece por acaso. Bom dia.

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