Genocídio de bicos e de gente.

Geraldo Nunes era um competente jornalista e vi quando começou a carreira. Ninguém soube lá que lapso lhe deu – se “linguae”, se “memoriae” – e, furibundo diante da mortandade de peixes, escreveu no título de um editorial: “Genocídio de peixes”. A zombaria foi geral. E, por mais que os amigos lhe dissessem da besteira que escrevera – explicando que genocídio referia-se a pessoas – ele, o jornalista, não aceitou a reação. Explicou-se: “Foi genocídio de peixe, sim. Peixe também é gente.”

Acontecera com o Magri, um ministro do Collor ao afirmar que “cachorro também é gente.” – justificando regalias e atenções de seu cachorro, diante da penúria de multidões. Uma socialite carioca Vera Loyola, querendo mostrar misericórdia e generosidade, leiloou a correntinha de ouro e pedras de sua cadelinha, cujo aniversário (da cadelinha) ganhava grandes espaços em jornais e revistas.

Nas ruas ditas chiques das grandes cidades, em lojas refinadas, o desfile de cães e gatos vestidos com roupas finíssimas, modelos exclusivos, tem cobertura especial da imprensa. Madamas carregam-nos no colo, exibem-nos, gastam-se fortunas para renovar-lhes os guarda-roupas. A chamada indústria “pet” é uma das mais rentáveis do mundo. Há institutos de beleza para animais, rações balanceadas, roupas da moda.

Há algum tempo, vi um jardineiro olhar, com ar sei lá se nostálgico se angustiado, os calangos que corriam pelas pedras, gatos vagabundos que passeavam por entre as árvores. À noite, contou-me ele, raposinhas passeiam em busca de alimento. E falou mansamente: “Em minha terra, meus irmãos ainda saem para caçar gatos, calangos e raposinhas para comer.” No sertão de Pernambuco.

Essas coisas, escrevo-as por ter conseguido o meu objetivo: o de avaliar até que ponto pode ir e chegar a estultícia humana. E de, também, considerar a agudeza da análise do Papa João Paulo II, há alguns anos, sobre o que ele chamou de “desvios afetivos”. A afetividade do ser humano está descontrolada. Emoções e sensações entraram em ritmo caótico. Tenho, em meus arquivos, a carta de uma senhora em que ela diz não saber a diferença entre dar comida a uma criança de rua ou a um cão abandonado…

Certa vez, em minha coluna do Correio Popular de Campinas, fiz comentários sardônicos e propositais a respeito da multiplicação de gatos sem dono na cidade. Provoquei, com humor negro: ‘Chamem o Bush para bombardear. Ele gosta de bombardear pessoas, por que não gatos?” Ora, já fui processado muitas vezes e, também, preso por opinião política. Fui processado até pelo uso de um ponto de exclamação. Por que não por causa de gatos? Foi o que aconteceu. Uma divertidíssima advogada campineira me processou. E uma outra leitora escreveu que estava rezando para eu morrer no lugar dos gatos. O doloroso em tal comédia é que pessoas há que não mais percebem – talvez por desvios afetivos – a diferença entre bichos e pessoas. Ou todos somos bichos, ou todos somos pessoas. Lembrei-me do Geraldo Nunes. Se ele propusera um “genocídio de peixes”, houve quem pensasse eu estar propondo um “genocídio de gatos”. Parece ter lógica.

Confesso ter tido lá minhas dúvidas diante da declaração do Papa João Paulo II sobre “desvios afetivos”. Não as tenho mais. “Desvios afetivos”, Freud os explicava, agora não sei como haveria de fazê-lo nessa confusão entre bicho e gente. As mesmas pessoas que gastam fortunas com gatos e cães não conseguem enxergar o garoto pedindo esmola na esquina, cheirando cola ou a menina que se prostitui. Há quem gaste pequenas fortunas para alimentar e cuidar de seu bichinho de estimação. E que reclame, indignadamente, por haver um programa Bolsa Família que, com míseros reais, está conseguindo mitigar a fome de multidões de brasileiros. Começo a temer pela cólera de Deus. Bom dia.

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