Gotas de mel.

Persegui, a vida toda, uma frase com a sonoridade de sol maior. Ou de lá menor. Imaginei-me no delírio da comunhão entre prosa e poesia, o ritmo e a razão, a música e a gramática, a harmonia das palavras encadeando-se como num vôo de pássaro, num deslizar de corça, num olhar de ovelha.

Neste meu tempo também de relembrar, vejo-me, nas noites em claro, garimpando palavras, escolhendo verbos, o coração galopando em busca de ritmo e harmonia apenas para prosear. Sonhei com prosa poética, com poesia em prosa. Para que assim fosse e acontecesse na minha vida, rompendo o falso dilema: vive-se na prosa; ama-se e sonha-se na poesia. Trata-se de meia verdade. A comunhão é possível.

Escrevo-as, essas coisas, por – ainda e em meio a tantas perplexidades – acreditar nelas. Confesso não saber como as preservei após a longa jornada de tantas batalhas. Seria como se, após enfrentar vendavais de poeira, se percebesse que apenas roupas ou pele foram atingidos, manchados. Mas é sujeira que se limpa com um bom banho em águas limpas, um mergulho em fontes puras. Na luta e na caminhada, mancha-se a farda, suja-se a roupa. Mas a alma está limpa. Desde que não tinha sido vendida, negociada.

Havia, antes, a lição do homem com terno branco cujo automóvel atolou num lamaçal. A alguns metros, estava o outro lado da terra firme. Atolado, ficou-lhe a alternativa: permanecer no carro e manter o terno branco limpo, sair do carro e sujar o terno. Ele hesitou: ficar e continuar com o terno limpo; arriscar e sujar o terno. Decidiu-se, saiu do carro. Caiu, levantou-se, voltou a cair na lama, reergueu-se, foi caminhando de tombo em tombo, sujando o terno e chegou à outra margem. Com o terno sujo, mas sobrevivente. Tirou a roupa enlameada, deixou-a para trás, continuou a jornada.

Ora, o que me resta, senão contar, advertir, prevenir? Pois o meu não é mais o caminho de ida, é o de volta. Já conheci a trajetória, vi as pedras, obstáculos, precipícios. Serei um tolo se der conselhos e tentar evitar que os mais moços façam a caminhada sem destino, a busca do lugar nenhum. Mas serei irresponsável se, já tendo visto e vivido, não contar do que vi e vivi. Um pai, quando vê a criança querer saltar da janela, tem o dever e a responsabilidade de, pelo menos, advertir: “Quer pular, pule. Mas você irá se machucar, poderá até morrer.” Ou não? Calando-se, pais e velhos experientes serão irresponsáveis. Este, o nosso, tem sido o tempo de irresponsabilidades.

O meu é o mundo de um sobrevivente. Sujei meu terno branco, mergulhei no lodaçal da vida, quis chegar à outra margem, usei da espada, conheci sujeiras, convivi com elas, enfrentei-as, fui preso, estive em celas e em prisão domiciliar, governantes e o guarda da esquina tentando submeter-me, vencer-me, forçando-me a permanecer com o carro atolado no lamaçal. Cheguei à outra margem. E joguei fora o terno sujo. A alma estava limpa. Continua.

Sou, no entanto, remanescente de uma geração fracassada, geração festiva em seu espírito e sonhos libertários. Fracassamos. Lutando pela liberdade, destruímos limites. É preciso um “mea culpa”, senão nada será reconstruído. Pois, em nome de renovação de valores e costumes, atingimos princípios. Mas princípios não morrem, mesmo quando aparentemente sepultados. No desespero e no caos, a única saída está na busca e na retomada deles. Feliz será quem puder reencontrá-los.

É possível, sim, viver a prosa poética, poetar a prosa, prosear a poesia. Mais do que uma frase em sol maior ou em lá menor, há as esquecidas gotas de mel. No auge e no fragor de tantas lutas durante a ditadura, um bispo, D. Aníger Melilo, me ofereceu, com singeleza, a lição de sabedoria: “Na vida, uma gota de mel conquista mais moscas do que um barril de vinagre.”

É o princípio da doçura. Que, substituindo a acidez do vinagre do cotidiano, pode mudar vidas, ressuscitar relações, reconstruir famílias, transformar mundos. Há milênios, o homem sabe que o paraíso está na terra de onde vertem o leite e o mel. Essa doçura existe, como a pepita de ouro escondida sob a terra. Mais do que olhos de ver e ouvidos de ouvir, é preciso haver corações de sentir. Bom dia.

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