Gravidez

picture (44)Houve duas tentações. Ou rendições. A primeira, a de querer desculpar-me com o eventual leitor. Seria, no entanto, contradição diante da outra, a tentação alternativa. Como se desculpa da própria dor? E como explicar esse cansaço todo, cansaço de abandono, de morte e de paz, talvez de algum cemitério pessoal? Desisti. Com alguma experiência do espetáculo, sei não haver desculpas para o ator. Ousando estar no palco, engole as vaias ou degusta o aplauso do espectador. Cada dia é um dia. Cada noite é uma noite. A dor do palhaço não importa. O show tem que continuar. O distinto público sempre tem razão.

Jornal tem muito – ou quase tudo – de um palco. Na verdade, é teatro de variedades onde a vida se desenrola: amor e ódio, belezas e feiúras, nascimentos e mortes, certezas e dúvidas, o sério e o frívolo. Se não se pode dizer seja o grande teatro da vida, há uma certeza: é, o jornal, o registro inicial dela, em toda a absurdidade do homem e do mundo. A variedade é tal que acontece, na mesma edição, de a colunista social detalhar festas regadas a champanha, o repórter policial escrever sobre o crime hediondo, uma entrevista permitir a mentira do político e a secção de falecimentos registrar os que se despediram. Da morte à vida, da festa ao luto – qual outro teatro tem variedades tantas?

Certa vez, um amigo querido disse, a uma platéia pequena e curiosa, que jornal é um rascunho da história. São, pois, rabiscos de cada dia, anotações. E o cronista é um dos contadores desse cotidiano. Pois bem. Outros amigos, num canto onde nos recolhemos, disseram-me do que eu já sabia: “Você está escrevendo de forma tensa, parece que com o coração na boca..” Estou. Sei disso. Tanto sei que – desculpando-me com o eventual leitor – pensei em pedir o que, quando engravidam, mulheres pedem provisoriamente: licença de alguns dias. Pois sinto sinais de gravidez.

Não entendo do lado feminino, mas, para o escritor, engravidar e parir é quase a mesma coisa. Mais elegantes, franceses dão, ao parto, o nome de “délivrance”. Explica o ato de parir mas tem, também, o significado de libertação, de entrega e de redenção. Mulher, quando engravida ou em véspera de dar à luz, sabe do que estou dizendo. Entende. Trazer e entregar o filho à vida é, ao mesmo tempo, ir gestando-o e, depois, libertá-lo do corpo e redimir-se nele. E, então, nada mais do mundo existe. Todo o resto fica em suspenso. O palco desaparece, as cortinas descem, o distinto público desculpe, mas o show não pode continuar. Há alguém sendo gestado..

Concordei com o meu amigo: sinto-me inquieto, tenso. Mas estou em gestação. Escritores, músicos, pintores, artistas gestam e geram, parindo. Esse meu filho literário plantou-se-me no útero da alma faz algumas semanas. Fingi querer abortá-lo, não consegui. Pois ele está tão enraizado em mim, é tão meu que se tornou eu mesmo.

Eu não o queria. E, ao mesmo tempo, eu o quis. Então, comecei a gestá-lo devagarinho, com lentidão. Estou esculpindo-o. Levará algum tempo para nascer, mas tudo se agita, personagens se entrecruzam, desfilam, passam, passeiam. São fantasmas da minha terra compondo um mosaico de uma história apenas nossa, ficção e realidade reunindo-se: NhÔ Lica, Estefânia, os Moraes Barros, crimes na zona do meretrício, amores clandestinos, um tempo e uma terra em ebulição. Tudo me estava grudado na alma. Agora, começa a escapar. Minha vontade, pois, é a de deixar o palco do jornalismo por algum tempo e viver a aventura da gestação, em sossego e recolhido. Mas não dá. Terei, então, que gestar, gerar e parir sem me afastar do cotidiano. O livro parece ter-me consumido a alma. Ela está nele. A angústia é a de saber que, algum dia, deixará de ser apenas meu. Nestes dias, tenho que cuidar dele como quem lambe a cria.

É conflituoso: detesto-o por tantos dilaceramentos; amo a ponto de querê-lo só para mim. Mulher entende. Bom dia.

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