Guerras e a verdade

VerdadeNas guerras, sabe-se que a primeira vítima é a verdade. Mesmo nas chamadas “guerras justas”, o fragor e a desumanidade dos campos de batalha acabam sepultando a verdade como se fosse objeto secundário. Perdida a noção do verdadeiro, perde-se, também, o sentido da própria guerra, pois os litigantes acabam, de uma ou de outra forma, se nivelando pela perda da razão. Nas guerras, em todas elas, a imprensa tem que obrigar-se ao desafio de ir em busca do que ainda há de verdadeiro, a menos que assuma o risco de perder a sua própria razão de ser. Deixaria, então, de ser instrumento de informação para ser parte do conflito.

A busca da verdade nas e durante as guerras continua desafiando o espírito humano. Da mesma forma como há um espírito artístico ou científico, há espíritos militares que abraçam a guerra como algo essencial à existência humana ou por simples prazer. Clausewitz, na sua grande obra “Da Guerra”, insistia na guerra como componente político. Guerra e paz seriam, assim, partes da mesma verdade: a paz, como continuação da luta com outros instrumentos; a guerra, para ir-se em busca da paz. À sua filosofia, juntam-se certezas da Idade Média e de épocas posteriores, criando conceitos de “guerra justa”, de guerra como “razão de Estado” e à guerra como crime. O enfrentamento a Hitler cumpriu todos os requisitos dessa “bellum justum”: autoridades legítimas declarando guerra a Hitler; causa justa, a ameaça do arianismo e, finalmente, uma justa intenção. Cumpria-se, também, a razão fundamental determinada por Clausewitz: a guerra, após o fracasso da diplomacia.

No Iraque e no Afeganistão, a guerra mostra todos os ingredientes em sinal contrário. Os Estados Unidos, desde George W.Busch, não tiveram uma causa justa, nem justa intenção, não houve legitimidade na declaração da guerra e, também, não se esgotaram os recursos diplomáticos. A verdade morreu antes da guerra, que nasceu de mentiras.

É nesse lodaçal que mergulha a imprensa mundial. E, sobre muitos veículos de comunicação dos EUA e da Inglaterra especialmente, pesa a grave responsabilidade de, tornando-se cúmplices da guerra, terem deixado de buscar a verdade dos fatos, pelo menos naquilo que ela possa se apresentar de mais meridiano. E, no Iraque e no Afeganistão, há pelo menos uma verdade que ninguém tem o direito de esconder: o massacre de inocentes, a matança de civis, idosos, mulheres e crianças, vítimas de uma violência sem justificativa moral e de ataques absolutamente desproporcionais diante do poderio do invasor e a fragilidade do invadido.

Todas as guerras são um desafio à razão de ser da imprensa. Esta, promovida pelos Estados Unidos, vai mais além e ameaça roubar a credibilidade dos que se renderam ao poder. Essa busca da verdade é a grande guerra da imprensa, que acontece em todas as guerras e, também, no cotidiano até mesmo de cidades interioranas. Nestas, a guerra da imprensa é para não ceder ao poder econômico, ao poder político, impondo-se como um valor do pensamento humano e das liberdades fundamentais, um poder, portanto, ideológico. Esse espírito de guerra não vive apenas em governantes e tiranos. Ele está vivo, em situações medíocres, até mesmo em pequenas localidades onde os poderosos de plantão se recusam a enxergar o papel da imprensa como estimuladora do senso crítico das populações. Para o Poder, a imprensa é colocada no nível de uma relação política primária, a de amigo/inimigo. Quem se subordina é amigo; inimigo o que discorda e que se opõe.

Isso acontece, também, nas pressões ainda não explicadas sobre o Irã. Ora, é um país ilhado por forças hostis e por potências nucleares. China, Paquistão, Índia, Israel têm a bomba atômica, os Estados Unidos estão plantados no Iraque. Seria somente medo de que o Irã usasse do poder nuclear contra inimigos, ou seria medo de que aquele país, a antiga Pérsia, se autoafirmasse e se defendesse? Não se pode esquecer que foram os Estados Unidos que fortaleceram Sadam Hussein no Iraque para que ele se opusesse ao Irã dos aiatolás, quando o aliado Xá da Pérsia foi deposto.

Jornalistas, intelectuais, a imprensa livre começam a ser prejudicados num macarthismo medíocre mas eficiente. Os Estados Unidos e aliados não hesitam em estabelecer a sua lei: quem não é meu amigo é meu inimigo. Mas eles sabem o que estão fazendo, pois conhecem a força da imprensa livre. Foram jornalistas e veículos livres que desmascararam a grande farsa do governo Nixon, que conseguiram mobilizar a opinião pública mundial e interromper a guerra do Vietnã. No Brasil, tão logo recuperou a liberdade, a imprensa deflagrou a retomada da democracia.

Políticos sabem que uma imprensa livre pode não eleger candidato algum. Mas que, buscando a verdade e encontrando a farsa, pode derrotá-los. No Iraque, no Afeganistão, no Irã, a imprensa vive também a sua própria guerra. Bom dia.

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