Haiti e o retorno do humano

Se é verdade que Deus escreve por linhas tortas e se, também, que insondáveis são os desígnios dos céus, há que se acreditar, então, que o Haiti abriga o povo escolhido para a redenção do que sobrou de digno, de solidário, de fraterno nos corações humanos. Pois a tragédia apavorante que se abate sobre aquele povo conseguiu, de forma imprevisível mas também alvissareira, revelar o que a humanidade tem de melhor, de mais generoso e verdadeiro.

A vitimação do povo haitiano, nessa perspectiva, lembra a saga de Abrão, a quem um deus colérico determinou matasse o próprio filho. Abrão obedeceu, o filicídio não aconteceu a troco da morte de um cordeiro e – numa dramaticidade que, talvez, nunca será entendida pela razão humana – Deus lhe prometeu grande descendência, tão grande quanto as estrelas dos céus, terras sem fim e a paternidade de um povo escolhido. O Haiti está sendo esse cordeiro imolado, o mais miserável país das Américas, o mais negro dos nossos povos do antigo Novo Mundo, o mais sofrido, o mais frágil, o mais desgraçado. Ele, se Deus escreve por linhas tortas, foi o escolhido para pagar, com sangue, os crimes de uma humanidade enlouquecida e que, agora, desperta como num conto de horror mágico para revelar a sua face generosa.

Pois nunca se viu, de maneira tão rápida e instintiva, tantos povos, tantos países, tantas pessoas movidos por tal e explosivo sentimento de fraternidade, algo tão solidário, desinteressado, grandioso em seu humanismo que deve valer, num suspiro de esperança, talvez como um primeiro passo para a retomada das nações de volta à sua dimensão verdadeiramente humana. A imolação do Haiti conseguiu, apenas como pálido exemplo, com que Estados Unidos e Cuba – separados por sandices político-ideológicas – se aproximassem pela primeira vez em mais de 50 anos, o espaço aéreo cubano inteiramente aberto à passagem das aeronaves de socorro estadunidenses. O mundo parou de se bombardear, apenas os loucos ainda matam nas ruas e cometem assassínios suicidas. O mundo conteve-se para ser solidário. É o sangue do cordeiro que, a partir do Haiti, faz a comunhão de povos e nações.

O mundo chora, um choro não apenas de dor, mas de uma consciência profunda de alteridade, no sentimento inexplicável mas verdadeiro de que a maior explicação para a excelência do homem está em sua capacidade de se colocar no lugar do outro, de ser compassivo e misericordioso e, acima de tudo, solidário. Soldados anônimos de todas as partes, em especial os heróicos soldados brasileiros, tentam salvar os que ainda sobreviveram, desconhecidos para eles. Astros e estrelas do mundo dos espetáculos e do entretenimento mobilizam-se e, pela primeira vez, o mundo começa a entender a grandiosidade das redes de comunicação social através da internet, o bem que a tecnologia, quando humanizada, pode fazer ao ser humano, em especial aos pobrezinhos.

Estarrecidos com as imagens do Haiti, os povos de todo o mundo se olham no espelho e se enxergam: o humano dos corações ainda existe. E, portanto, há mil razões para continuar existindo esperança. Os maus políticos são soterrados quando as avalanchas de dignidade e de solidariedade se transformam em correntes universais. Aliás, quando se vê uma brasileira como Gisele Büdchen, doando 1,5 milhão de dólares de sua fortuna em prol do povo haitiano, não há como deixar de pensar em nossos políticos brasileiros. E se eles, os eleitos pelo povo – todos os vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores do Brasil – doassem apenas 10% de seus polpudos salários de apenas um mês – aliás, dinheiro do povo – para os sobreviventes do Haiti, não seria, essa, uma forma de começar a pedir perdão? Seria, pelo menos, o dízimo de alguma coisa generosa e decente. Bom dia.

PS : Antes que algum corrupto mais desavergonhado me cobre por minha contribuição, aviso que já a fiz, na medida de minhas posses. A conta do Banco do Brasil, para socorro solidário ao Haiti, é: 91.000-7, agência 1606-3.

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