Haiti, Hiroshima, Nagazáki

Suponhamos estejam certos os que acreditam em castigo de Deus diante de tantas tragédias que se sucedem. Se assim for, Deus está colérico, é colérico, como que irritado por ter sido despertado de seu sono neste sétimo dia da criação ameaçada pela criatura. Ou não seria mais lógico e honesto fazermos um mea culpa universal admitindo a responsabilidade por tantos desatinos, pela desordem moral que instalamos, pelo desrespeito crescente a todas as regras e leis, incluindo as da natureza?

O Haiti tem sido sistematicamente destruído pela insensatez e cupidez dos humanos. A sua é uma história de ignomínias, de afrontas à dignidade humana, de destruição sistemática de um povo que foi um dos primeiros, na América Latina, a se organizar como país independente e livre. A cupidez humana vem destruindo, pois, o Haiti. E se cólera agora houve, talvez seja a das leis naturais que irromperam do Hades subterrâneo para, numa terra já destroçada, dar, talvez, um dos últimos avisos e recados: o de que as portas do inferno se abriram de vez.

Não há como comentar essa tragédia tão próxima de nós, os demônios soltos no paraíso tropical do Caribe, onde o Éden ainda deixa traços até mesmo para que tenhamos nostalgia do que fomos. A tragédia é inominável. No entanto, nada do que acontece acontece por acaso, todo mal podendo, pois, ser causa de algum possível bem. Diante da tragédia no Haiti, a reação mundial – de governos, de ONGs, do povo anônimo – é comovedora, mostrando que o instinto de solidariedade é universal e permanece vivo na humanidade. Por que, então – se tanto nos chocamos com desastres e catástrofes de ordem natural, como terremotos e tsunamis – não nos repugnarmos, definitivamente, com as guerras estúpidas, com os morticínios sem sentido, com a mortandade ilimitada de inocentes para satisfazer interesses econômicos, religiosos e políticos?

Se a solidariedade em relação ao Haiti é motivo de alegria e de esperança, a sua revelação não deixa, porém, de ser um lado da moeda. Pelo menos de minha parte, não consigo deixar de estabelecer paralelos, de fazer comparações, vendo a carnificina provocada pela natureza e lembrando da carnificina produzida por governos, por fanáticos em todo o mundo. Hoje, ficam-nos na memória as tragédias provocadas mais recentemente: as Torres Gêmeas, bombardeios criminosos sobre Iraque e Afeganistão, a infindável saga dos civis, homens e crianças palestinos. No entanto, houve um crime maior sobre o qual historiadores e meios de comunicação insistem em silenciar, ainda não sei se por covardia, se por vergonha, se apenas por conivência: a matança proposital que os Estados Unidos fizeram em Hiroshima e Nagazáki, usando da energia atômica para o extermínio.

As novas gerações deveriam – diante das cenas dantescas do Haiti, mostradas em cores e ao vivo – ser melhor orientadas sobre o foi o genocídio, sim, de centenas de milhares de japoneses inocentes, uma tragédia que poderá se repetir a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo.

O pobre e belo Haiti deveria ser o nosso ponto de inflexão para uma retomada de caminhos, para uma convivência realmente honesta e pacificadora. A natureza mostra-se mais colérica do que o próprio homem, refletindo, talvez, a cólera de Deus. O Haiti não pode continuar sendo vitimado em vão, imolado inutilmente. Bom dia.

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