Harry Potter, bruxos e santos

picture.aspxÉ óbvio que há sempre um livro de Harry Potter assanhando netos. Quanto ao bruxinho, acompanhei-o até o segundo volume, o livro. Pois era preciso manter o diálogo com a criançada. Mas desisti. Acontecia, à época, que se me esgotava o prazo para tentar ler o “Ulisses”, de Joyce. Busco fazê-lo desde a edição de 1967, há 40 anos exatos, portanto. Acabei por criar um ritual: a cada cinco anos, tento de novo. Continuo nada entendendo. E deixo de ler.

Vi apenas um filme do Harry Potter, mas sei de suas façanhas e peripécias. E o bruxinho foi um dos elos que me mantiveram próximo de adolescentes nos últimos tempos. Harry consegue – à maneira da alta tecnologia – manter vivo o maravilhamento milenar. Antes dele, tentei falar, a meus netos, de mula-sem cabeça, de saci, de bruxas, de feiticeiros, de almas penadas que haveriam de lhes puxar a perna à noite, se não me obedecessem. Não acreditaram em mim. Vingo-me vendo-os deliciarem-se com Harry Potter. Cada geração tem o Merlin que merece. E o Bóris Karloff.

Harry Potter – em tempos de racionalidades absolutas, do “homo mediaticus” – tem conseguido mostrar que a ciência não pode tudo. Até poderia – se não tudo, quase – se fizesse uso da “mise-em-scène”, da mágica. O velho Caramuru, João Ramalho, sabia disso. Diante de índios hostis, estourou alguns rojões, lá estava a pólvora soltando fumaça e fazendo barulho como os trovões, feito Tupã. E Caramuru ficou rei, tão poderoso quanto o pajé. A ciência e a religião têm, no mistério.

O maravilhamento das crianças e adolescentes diante de Harry Porter é sintoma claro, penso eu, da vocação humana para o encantamento. Ninguém vive sem o faz-de-conta. Cobrar uma racionalidade fria e objetiva é estupidez. O homem não é apenas um ser racional. Mas, também ou especialmente, um ser sentimental. Se não fizer-de-conta, o cérebro explode. Pode-se, a isso, dar-se o nome de esperança.

Há pessoas que não se espantam, as que se espantam. Esse não-espantar-se com mais nada pode ser a apatia da alma, o endurecimento do coração, a desistência diante da vida. Espantar-se sempre, essa é graça que acompanha o homem em sua caminhada para o não-sei-onde. Harry Potter entrou, definitivamente, na galeria dos bruxos, feiticeiros, das fadas, dos duendes que fervilham a imaginação humana. Ele espanta.

É uma onda universal, essa do maravilhamento, do fascínio por aquilo que a tecnologia pode criar. Se se disser tratar-se de invenção humana pelo computador, dir-se-á apenas o óbvio. Deuses e demônios são criações humanas, que nos acompanham desde as cavernas. As antigas feitiçarias dos nossos ancestrais transformaram-se em magias que envolvem todas as religiões: transfigurações, ressurreições, visões, milagres, transmutações de substâncias. Ou não é mágica o pão tornar-se corpo, o vinho tornar-se sangue?

Poderíamos, fôssemos inteligentes, criar esse mínimo de magia, num cotidiano brutal, até num simples café da manha, uma celebração de carinhos. O tempo, agora, é o de fazer-de-conta que somos bons. De ser maldosos, fazemos de conta faz tempo. Bom dia.

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