Impressões digitais de Deus

Esse texto foi publicado em 10 de agosto de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Uma criança de 12 anos — após estar à janela olhando a imensidão (céu borrado por uma lua escandalosa de tão fulgurante) — perguntou-me: “pode existir quem não acredite em Deus?” Eu também não sei, tão evidentes as suas impressões digitais diante de nossos olhos.

Vi-as ainda outra vez, ao longo de uma estrada que me parecia monótona e interminável. Minha única vontade era chegar. E os olhos como que enxergavam apenas o asfalto, a enorme língua negra que parecia não ter fim. Então, entardeceu. Nunca havia notado que o horizonte pode estar próximo e que a sua linha é capaz de adquirir contornos irregulares. Pois eu vi. Não lembro se numa curva, numa descida ou subida. Mas o horizonte estava-me diante dos olhos.

Do canavial, subia uma fumaça cinza e o vento parecia levá-la em direção ao sol. Ou era o sol que atraía. E a fumaça ia-se esvaindo, desvanecendo-se, e ficava apenas o sol, de um vermelho indescritível que envolvia canaviais, árvores, colinas. Não havia nuvens e tudo estava sereno. Uma tarde agônica. Um sol também agônico. Que se ia morrendo lentamente, dando-me uma dupla sensação: a de estar querendo ir-se logo ou a de que lutava por ficar.

Diminuí a marcha do automóvel. O importante não era chegar, mas estar. Ver. Perceber. Sentir. Quantos milhões de poentes ao longo da história do mundo? Um êxtase que se renova todos os dias e que não é saboreado, tal como o homem saudável que não dá valor à própria saúde. O homem de talentos que não se dá conta dos próprios dons. Tive a sensação estranha, mas por assim dizer real, de que, estando solitário, dialogava com as cores, com o horizonte, com a luminosidade indescritível que chegava a ferir-me os olhos.

Um impossível diálogo de mudos que, no entanto, acontecia numa estrada qualquer. O sol que me falava ou eu mesmo que me dizia: “Olhe, estou indo devagarinho, sem pressa, morrendo e deixando marcas, morrendo e espalhando belezas. Não lembro porque vou, pois sei que volto. Apenas demoro-me para ir, querendo participar do verde e do azul, do diáfano e do opaco. Vou-me sereno, porque sei que volto. Não digo adeus, mas até amanhã. Repito-me todos os dias e sou sempre diferente. O meu segredo está em que consigo ser sempre igual. Os olhos que veem é que me transformam.

Ora, direis, ver e ouvir o sol! Alucinação ou loucura, poesia ou tolice, pouco me importa. Interessa-me que vi e ouvi. E a alma transbordou de ternura, de alegria e paz. E descobri que o homem feliz não era eu — que deslizava por uma longa e solitária estrada mas aquele que ficara à margem, qualquer homem, talvez com mochila nas costas, mas que, andando e caminhando, tivesse visto poentes mais esplêndidos do que eu vira.

Tinha razão a criança: o impossível não é acreditar em Deus. Impossível e deixar de acreditar. Suas impressões digitais estão em todos os lugares, para serem vistas e sentidas. Bom dia.

Deixe uma resposta