Incomodado com No Limite
São dessas coisas que acontecem. E, então, que perturbam. Confesso que sabia do programa No Limite apenas por informação de leitura. Para mim, deveria tratar-se de mais um daqueles lamentáveis espetáculos como os tais BBB da vida, despudorados, a privacidade alheia colocada na vitrina, voyeurismo doentio. Já me declarei um quase alienado em relação à programação de tevê aberta e, portanto, incompetente para julgar ou avaliar. Totalmente alienado não o sou por culpa exclusiva de esportes e do CQC, Por outro lado, estou entre admiradores de importantes e belos programas na televisão paga, com canais realmente preocupados com seriedade até mesmo em entretenimento e lazer.
Pois bem. Na semana passada, procurando algo para ver, deparei-me com um trechinho de No Limite. Chamou-me a atenção, pois era um grupo de moços e moças que aceitaram desafios para sobreviver em condições difíceis e se mostravam solidários uns com outros. Deixei passar. Em outra noite, coincidiu de ver outro trechinho. E a curiosidade aumentou. E, nesta semana que finda, lá me vi eu assistindo a um programa inteiro, justamente o que iria determinar o afastamento de um dos componentes. De repente, então, me dei conta de que aquele programa ia além de uma grande jogada de marketing, de uma busca simples de audiência, pois – pelo menos no pouco que vi e senti – estava mexendo, trabalhando, quase que manipulando a totalidade da natureza humana. E confesso ter-me incomodado, como se algo do mais profundo do ser humano estivesse sendo revelado, desvendado, mostrado sem artifícios e teatralizações.
Para sobreviver, criamos a vida comunitária, a cidade, os vizinhos. E somos solidários quando se trata da sobrevivência comum ou, então, do conhecido ou parente ou amigo que necessite de auxílio. As antigas sociedades de “mútuo socorro” tinham esse espírito coletivo de solidariedade. E, no entanto, essa sobrevivência comum esbarra num paradoxo profundo de egoísmo e de crueldade quando se trata de competição ou da alternativa dramática: ou eu ou ele; ou minha família ou a dele. Diante da alternativa extrema, pessoas generosas e de caráter bem formado acabam se transformando em seres cruéis e pragmáticos. É o “struggle for life”, a luta pela vida, que Darwin entendeu em todas as espécies vivas.
Volto a admitir minha incapacidade e desconhecimento para discorrer sobre esse programa de televisão, pois foi pouco, muito pouco o que vi e, talvez, nem saiba mais quem irá trair quem, quem irá sobreviver ao preço de matar a convivência, a solidariedade, o companheirismo. Mas confesso ter sido levado a uma reflexão dolorosa a partir desse tão pouco. E não gostei do que pensei, senti, captei. Pois, para mim, No Limite é, apenas, um retrato pálido, um esboço ainda incompleto de uma realidade ainda mais cruel e dramática, que é a das sociedades humanas neste estágio do século 21, em todas as latitudes e longitudes.
O homem continua sendo o lobo do próprio homem. Sempre foi, desde a mais remota antiguidade. Diziam os latinos: “homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem) e “lupus est homo homini non homo”, cuja tradução é ainda mais trágica: “o homem é lobo e não homem para o outro homem.” No conflito, não se sabe mais o que é luta pela sobrevivência ou puro egoísmo.
Assim sempre foi, assim continua sendo. E a amargura está em admitir que assim sempre será, o que mataria esperanças, roubaria forças, destruiria ânimos. Há o anjo e o demônio num só homem. Que, vendo uma criança ameaçada de ser atropelada por um carro, é capaz de saltar e arriscar a vida para salvá-la. Mas, também, capaz de matar até o irmão para realizar seus desejos. E dizer que o ser humano foi o sonho mais acalentado de Deus… Bom dia.