Inércia
Admito que, de quando em quando, me bate um cansaço que penso seja definitivo. De repente – não sei como ou porquê – as forças voltam e, com elas, a certeza de ser impossível alhear-se do caos instalado, “deixar estar para ver como fica”.
Se uma pessoa for-se descuidando no dia a dia, ela – por mais bela, boa e interessante seja – acabará se transformando num trapo. Imaginemos a Gisele Bündshen deixando, por uns 10 dias, de tomar banho, de fazer sua higiene, de escovar os dentes, de lavar os cabelos, de não lavar o rosto ou as mãos o as partes íntimas. A bela Gisele irá, gradualmente, transformando-se num ser repelente. Aconteceria a qualquer um de nós. E acontece com as cidades.
Do grande Thomaz Jefferson – um dos pais da nação estadunidense – é a frase que se tornou símbolo universal: “a eterna vigilância é o preço da liberdade.” Para os religiosos, algo semelhante foi dito por Cristo: “vigiai e orai”. Os chineses acreditam que, na escuridão, se cada um de nós acender uma vela, haverá claridade. E o povo sabe que se cada família limpar a sua calçada, a cidade ficará limpa. Portanto, a vigilância, os cuidados, a atenção, o zelo, a reação positiva são verdades imemoriais para se manter princípios da civilização.
As três principais vertentes do poder – em Teoria Política – são o poder ideológico, o econômico e o político. O mais poderoso, em nível nacional, é o político, pois tem o poder das armas,o domínio da força. No entanto, a influência do poder econômico é, muitas vezes, mais significante do que o das armas, da força. E quando, então, se unem o poder econômico e o político, empresas e partidos políticos? O ex-presidente Eisenhower, nos 1950 e ao deixar o poder, advertiu o mundo para o que chamou de “Estado militarista”, a força das armas aliada à força dos grupos econômicos. Ambos, tudo fariam para conquistar o apoio do poder ideológico, esse que é o do pensamento, das idéias, causador de grandes transformações e revoluções.
Quando o político e o econômico conseguem se apoiar em fundamentos ideológicos, é quase inevitável o massacre incruento de povos, de nações e de pessoas. O povo perde a resistência, a imprensa se alia aos interesses do mercado, instala-se o pensamento único, diminui-se a utopia democrática para tornar a liberdade apenas instrumento servil de desregulamentações da economia, da moral, da cultura, da nacionalidade. Povos são instrumentalizados, da mesma forma como o são em países autocráticos e teocráticos, silenciados pelas e submissos às leis da tirania e das religiões.
Piracicaba não foge a esse cenário melancólico e triste, perigosamente silencioso como a quietude que precede os grandes temporais. A classe política se mediocrizou e se submeteu ao poder econômico. O poder ideológico – imprensa, intelectuais, universidades, pensadores – parecem submersos ou aceitaram a servidão. Sindicatos, clubes de serviços, entidades existem como ilhas isoladas, sem conexão e sem comunhão. Cada qual olha para seu próprio umbigo. Enquanto isso, a juventude está sem Norte, sem referenciais que não os da mediocridade e do oportunismo, o do sucesso rápido, do vale-tudo, da desesperança no mérito que foi substituído pela esperteza,conivências e cumplicidade.
Isso não aconteceu de ontem para hoje. Vem ocorrendo, como pingos da água de uma torneira com defeito, em conta gotas, a pouco e pouco. Perdeu-se a vigilância e, com isso, perdeu-se, também, o senso crítico e as capacidades de reação e de indignação. Estamos vítimas de nossos pecados de inércia. Crianças se tornam tolas, mimadas, estúpidas. Jovens parecem zumbis. Moços não amadurecem. Não se sabe mais o que é estrutura familiar, tal é a bagunça das uniões, como tribos que se não entendem. Professores são desmoralizados, mestres, ignorados. A nossa história cultural passou a se resumir a uma consulta ao Google.
A inércia elege candidatos, permite inchaços em nome do progresso, favorece bandos e grupos de interesses. A Província continua e continuará sendo um espaço de resistência histórica e cultural, analítico,de observação, de recusa a submissões, espaço aguardando a alma coletiva. Pois há um grave perigo que a inércia anuncia silenciosamente: depois da aparente calmaria, depois da aparente submissão, vem a revolta. O mundo se tornou um barril de pólvora explodindo setorialmente. O Brasil – por mais se louvem os novos tempos – não está fora desse teatro.E, portanto, Piracicaba também não. Quando a explosão acontecer, nada haverá a estranhar. E – não se duvide! – ela será inevitável. E está muito próxima. Há cheiro de rebeldia no ar. Bom dia.