Internet, lixo e democracia

Internet e LixoHá um novo povo brasileiro. E quem não conseguir enxergar ou enganar a própria consciência a respeito disso estará, para si próprio, cometendo suicídio moral. Há um novo povo mas com estruturas e instituições ainda antigas, muitas delas superadas. E é esse o grande problema e, também, o desafio a partir de agora. Pois estão ruindo castelos antigos, entram em colapso fortalezas tidas como inexpugnáveis. A internet tornou-se propulsora de uma revolução inédita cujas conseqüências ainda não podemos prever por inteiro, mas que permitem observações fecundas.

Basta um mínimo de observação para se perceber uma das principais transformações a que assistimos, a partir desta campanha eleitoral que chega ao fim. Há cerca de duas décadas – em 1989 – a tevê Globo conseguiu inventar, criar e eleger um jovem político de Alagoas, travestindo-o de “caçador de marajás”. Com novelas espetacularmente produzidas, com noticiários requintados e emotivos, com refinamentos de alta qualidade técnica, a televisão dos Marinho produziu e elegeu, praticamente sozinha, um desconhecido à presidência da República. Seu poder era tanto que, quase ao mesmo tempo, tentou falsear até mesmo a contagem de votos que, no Rio de Janeiro, dava a vitória a Leonel Brizola. Anteriormente, a Globo precisou ser pressionada por imensas multidões para nos dar a honra, como telespectadores, de informar que as praças e ruas das cidades estavam inundadas de pessoas clamando pelas “diretas já”. O controle da informação por poucos já era notório.

No entanto, no mundo, já se sabia que uma revolução estava prestes a explodir. Primeiro, no final da década de 1960, já surgiram indícios, com o surgimento de uma certa Arpanet que buscava fazer rede de computadores. Já nos 1970, algo mais concreto se revelava e, nos 1980, surgiu a Internet, ainda tímida mas com a vocação avassaladora para transformar o mundo, hábitos, costumes, estruturas sociais. Não percebeu quem não quis, quem não pôde, quem teve medo de mudanças pensando pudesse conter a revolução tecnológica.

Na década de 1980, fui testemunha privilegiada do que estava acontecendo pois, para meu envaidecimento pessoal, eu fora indicado por setores da CNBB como um dos poucos leigos a participar de estudos que se faziam no CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em busca de uma Teologia da Comunicação. Foram encontros de altos estudos cá no Brasil, na Argentina, no Chile, no Peru. E já se constatava, então, que mudanças extraordinárias estavam surgindo e que os meios de comunicação iriam ser transformados. As tendências seriam, ao mesmo tempo, a formação de uma rede mundial de comunicação e informação, da permanência de apenas alguns veículos nacionais e o aparecimento de múltiplos órgãos de comunicação paroquiais, jornais de bairro, rádios e tevês comunitárias. A globalização levaria, também, inevitavelmente à fragmentação.

Recordo-me, com vaidade e alegria, que, em O DIÁRIO, fizemos ampla e formidável atualização: os bairros tornaram-se sujeitos preferenciais de nosso jornalismo e o próprio povo seria, também, o grupo preferencial de repórteres. Tomamos para nós um dos “slogans” da CNBB para uma das Campanhas da Fraternidade: “A Voz dos que não têm Voz.” Foi uma explosão de reconhecimento, de popularidade, de confiança do povo na ação e na missão jornalísticas. As mudanças estavam chegando. Rádios, jornais, emissoras de tevê, revistas não poderiam mais acreditar que poderiam, impunemente, ser “a voz dos donos, das famílias”.

Esta campanha eleitoral – cujo resultado parece previsível mas ainda não se deu – foi, em essência, a grande luta, e também o estertor, de um complexo de comunicação monolítico que se uniu para fazer o Brasil conforme a sua imagem e semelhança. O povo deu-lhe nome: o GAFE, iniciais de Globo, Abril, Folha e Estadão. E são, sim, quatro famílias criando impérios de comunicação – os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita – como acontece em países de economia de mercado, sem regulação econômica, produtores dos Murdoch da vida e do mundo.

A internet, como se previa já desde os 1980/90, despontou como força autônoma, um dragão que carrega, ainda, muito lixo nas vísceras, mas com uma vocação democrática extraordinária. Foi pela internet que a população reagiu e se informou, através de jornalistas e intelectuais livres que desnudaram o rei, que reagiram a mentiras e a farsas, que apresentaram outras versões. Nunca se assistiu a um espetáculo tão melancólico de ofensas, de infâmias, de calúnias, de mentiras. E, no entanto, nunca se assistiu, também, a uma força tão poderosa de reação democrática, derrubando as Bastilhas, derrotando capitanias hereditárias, dando fim a sesmarias.

Há, pois, um novo povo no Brasil. E um novo Brasil. Dificilmente, alguém irá governá-lo com vícios antigos, com fórmulas ultrapassadas ou com privilégios de classe, de família ou de exclusivismo. O desafio é dar maturidade e dignidade à internet, varrendo o lixo para permitir brilhe o esplendor de uma comunicação humana mais verdadeira e digna. As novas gerações herdarão esse bem. Bom dia.

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