Jardineiro milionário

Com apenas dois reais, o humilde jardineiro – de 78 anos, com 11 filhos, a mulher doente – acertou os números da milionária loteria que contemplou apenas dois ganhadores com cerca de 72 milhões de reais cada um. O homem de Santa Rita do Passa Quatro disse que realizaria um sonho: o de comprar a fazenda onde nasceu, filho de colonos, que lhe custaria 4 milhões de reais. Quanto ao restante, a resposta do jardineiro foi de uma singeleza tocante: “Não sei o que fazer com tanto dinheiro.”

Empresários, filantropos, jovens ambiciosos teriam, com certeza, planos e projetos prontos para aplicações, aquisições, compras, investimentos. A candidez do jardineiro – “não sei o que fazer com tanto dinheiro” – acaba convidando-nos a profundas reflexões, penso eu. Pois, de minha parte, confesso que – a não ser ajudar parentes e amigos, algumas obras sociais, adquirir coisas sem importância – também eu não saberia o que fazer com tanto dinheiro.

Andei refletindo, fazendo alguns cálculos. Se, por mais dispersivo, perdulário e consumista seja alguém, digamos que gastasse, por mês, a soma absurda de 100 mil reais, em luxos, em inutilidades, em prazeres, em fantasias que, aliás, haveriam de se esgotar. Num ano, somaria 1.200 milhão. Para consumir os 72 milhões ganhos na loteria, ele precisaria de exatos 60 anos de gastanças, de orgias, de loucuras desenfreadas.

O jardineiro, comprando a fazenda onde nasceu, atendeu ao apelo visceral de suas entranhas, o umbigo enterrado, um sonho ancestral, talvez, de o homem ligar-se à terra que o gerou. No fundo de mim, tenho a impressão de que isso lhe basta, como se alcançasse o fim de uma caminhada, uma revisão de vida, uma retomada de infância e juventude talvez onde ficaram sonhos não realizados. E, agora, fazer o quê, se apenas a administração de tal fortuna irá roubar-lhe sossego, paz, serenidade para saborear o sonho realizado, alcançado? De uma certa maneira, ele encontrou o lugar de retorno, de volta. E será onde, se a fortuna não o enlouquecer, encontrará sua paz.

O fato é que o jardineiro de Santa Rita do Passa Quatro me ajudou a aprofundar-me em reflexões que já me acompanham, de opções de vida, de escolhas, de caminhos. Hoje, pouco me interesso por comprar coisas, por tê-las. Nem mesmo livros, que são a grande paixão de minha vida e que ocupam uma biblioteca que amo, já não me interesso em adquiri-los. Pois há tanto para ler, há tanto para reler, há tanto e tanto à minha espera que nem ainda consegui compulsar, que me parece fastidioso adquirir o que anda sendo publicado, pois o mais rico e precioso já foi escrito antes. Ora, se li, ao longo de 60 anos, uma média de 50 livros por ano, cheguei ao limite máximo de ter lido ínfimos três mil livros, incluindo escolares, universitários. E os milhares de outros ainda à minha espera? E as anotações que fiz para o que ainda quero e pretendo escrever? Quando o farei, se o tempo já se me esgota?

Não, eu não saberia o que fazer com tanto dinheiro e nem tenho interesse em tê-lo. Nem viajar pelo mundo já me interessa. Pois o meu mundo ampliou-se na medida em que ficou menor. Estou no tempo de desfazer-me de coisas, não mais de acumulá-las. Sinto-me culpado ao abrir armários e ver camisas, calças, sapatos, ternos que nunca mais usarei, muitos ainda quase novos. Por que tê-los? E tantos objetos comprados, adquiridos ao longo da vida, incluindo livros? Quadros, discos, objetos de arte, coleções, minha casa já transformada quase num mausoléu, os filhos vivendo suas vidas, morando em outros lugares. Para quê?

Quanto mais penso, mais me convenço de como precisamos de pouco para viver com dignidade e beleza. Da soma de tudo que adquirimos, sobra muito pouco que realmente tem alguma importância. E são os objetos mais simples, lembranças feitas de ternura, bilhetes de amigos, de desconhecidos, de amores que se foram. E fotos da gente querida, especialmente de ancestrais que, no silêncio eloqüente de suas posturas, parecem estar vigiando e, ao mesmo tempo, fazendo chamamentos. O velho jardineiro milionário, realizando o sonho de comprar a fazenda onde nasceu, já se plenificou. Sem saber o que fazer com a montanha de dinheiro que sobrou, ele já se refere a ela como o resto. A sabedoria da vida, em chegando, ensina a um novo olhar e, assim, a enxergar melhor. Enxerga-se, ao fim de tudo, com o coração. Depende de quem o queira. Bom dia.

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