Joãozinho, o consultor da memória

JoãozinhoContaram-me, outro dia, que fulano e beltrano são candidatos a alguma coisa na próxima eleição. Dei de ombros, sentindo-me distante, quase ausente, num universo que não mais me desperta interesse. Pois, finamente e abençoado pelos céus, consegui mergulhar no universo da memória, na busca de reconstituir um tempo e uma geografia, de contar histórias de minha terra. Já fiz minha profissão de fé e a renovo, com alegria de júbilo: será o meu mais árduo trabalho intelectual e minha última história a ser contada, pois demandará todo o tempo que ainda espero seja suficiente para poder concluí-la.

Ando perturbando muita gente a fim de reconstituir o que parece perdido. Alguns já não se lembram, outros guardam resquícios de uma história, uns poucos recordam-se de coisas, fatos, acontecimentos, lugares, situações como se estivessem acontecendo agora ou se ainda permanecessem como eram. Anoto, registro, faço apontamentos com a sofreguidão de quem está descobrindo o novo ou desenterrando tesouros. Meu sonho é proustiano, caipiramente proustiano, sem, porém, ir em busca do tempo perdido e, sim, do tempo vivido. Que, aliás, deve ter lá suas parecenças. Será um olhar o mundo a partir de uma cidadezinha do interior, as transformações, as mudanças, a caminhada do ser humano a partir de sua terra quando, então, descobre a universalidade de tudo. O que aconteceu na China repetiu-se aqui; a bomba de Hiroshima causou estragos também aqui. E assim caminha a humanidade.

Há coisas que desapareceram junto com pessoas, com famílias, com costumes. Ou que readquiriram outros nomes. Seria estranho para muitos, penso eu, se eu me referisse a um pajem, a alguém que pajeava uma criança. Pajem, talvez, tenha resistido como algo nobre, acompanhante de príncipes. E, no entanto, ser pajeado era ter alguém que cuidasse de si como uma babá. Eu tive um. E ele está vivo. E mora pertinho de mim. E se, em outra secção deste jornal eletrônico, falo de um filho negro, o da alma, refiro-me, agora, a um pajem negro, que foi como um irmão mais velho, que cuidou de mim, que me protegeu, o Joãozinho Feliciano, agora com a carapinha quase toda branca, o eterno sorriso brincando-lhe nos lábios, a cervejinha e a cachaça alegrando-lhe a vida. Qual,meu Deus, a estupidez que tornou politicamente incorreto falar-se desses tesouros de humanidade que foram a Mãe Preta, o Preto Velho, a quem tanto devemos em amor e carinho.

Joãozinho, meu pajem negro, é, hoje, sim, o Preto Velho, um dos meus principais consultores de memória. Encontro-me com ele num barzinho quase ao lado de onde moro. Ao me ver, ele faz festa, abraçamo-nos e ele não cansa de repetir com um orgulho que me enternece: “Eu pajeava esse menino.” Para ele, eu ainda sou menino. E meus olhos ficam úmidos quando me lembro dos cuidados de Joãozinho, alguns anos mais velho do que eu, sua presença constante: Joãozinho levando-me à matinê no Cine São José; Joãozinho levando-me ver, com espanto, a derrubada das árvores do jardim do antigo Largo da Matriz; a mãe de Joãozinho lavando a roupa da família; a avó de Joãozinho cozinhando ao lado de minha mãe e outras mulheres no restaurante que meus pais mantinham, um bar, um café, onde se comiam sanduíches de pernil, quibes, esfihas.

Sento-me com Joãozinho, na mesa que fica na varanda do boteco, não consigo entender como ele sobrevive ao alcoolismo e, mais ainda, como a lucidez e a memória não o abandonam. Ele, quando mocinho, tornou-se gari da Prefeitura e nessa condição se aposentou. Joãozinho me lembra nomes de pessoas que não podem faltar na história que começo a alinhavar. E de fatos que, por pequeninos que parecessem ter sido, marcaram a cidade. “Você se lembra da festa do fim da Guerra, a multidão na praça?” – pergunta-me ele, meu consultor negro de memória. E é como se adivinhasse a síntese do que estou querendo contar: a alegria do final da II Guerra repercutiu em Piracicaba como em todo o mundo e nossa terra passou a viver novos tempos, os da transformação, como se um véu fosse descerrado e coisas ocultas aparecessem.

Quando me despeço – deixando-lhe sempre uma caixinha de cerveja para ele consumir, sem que ele perceba mas sabendo que ele sabe – Joãozinho me abraça de novo, os olhos dele se iluminam e os meus se umedecem novamente: “Eu pajeei esse menino.” Mas sempre me esqueço de lhe perguntar o nome da tinta com que a mãe dele tingia os calções de saco de farinha que as mulheres costuravam e que eram como que o uniforme da criançada pobrezinha de nossa geração. Qual o nome da tinta, que fim levaram aqueles tachos enormes de tingir roupa? Basta-me atravessar o portão, andar alguns passos, encontrar Joãozinho numa das mesas do bar ou no banco do jardinzinho onde homens idosos e aposentados jogam cartas. Entre meus fantasmas, sinto-me abençoado. Bom dia.

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