Justiça caridosa, caridade justa

JustiçaO Brasil está como que paralisado de expectativa diante do julgamento do casal Nardoni, pai e madrasta da pequenina Isabela, acusados pelo assassínio brutal da menina. E uma só palavra – em seus mais diversos sentidos – se repete e se multiplica, através das mais variadas manifestações: justiça. O povo quer que se faça justiça, eis o resumo do clamor coletivo. E, por justiça, já se entende a punição do casal, condenado antes mesmo do julgamento.

Quando o povo, em uníssono, pede por justiça, podemos estar diante ou de uma reivindicação plena diante de algo absolutamente óbvio, ou diante de uma irracionalidade perigosa. Clamores coletivos podem levar à justiça popular, quase sempre em forma de agressões físicas, de linchamento. É a lei de Lynch, que, em muitos lugares e através dos tempos, se sobrepôs à lei legitimamente constituída. Nem sempre, pois, a voz do povo é a voz de Deus. Mas, quase sempre, o clamor popular tem fortes razões para ser ouvido.

A busca de uma verdadeira conceituação de justiça acompanha a humanidade desde os seus primórdios e, ainda hoje, é discutida, apesar de legislações aprimoradas e democráticas que nos chegaram a partir da vivência de ancestrais. São dois conceitos chave de justiça que norteiam o mundo ocidental: a conduta de conformidade a uma norma e justiça como eficiência de um conceito de normas. Seria tolice tentar, numa croniqueta, discorrer sobre fundamentos filosóficos, incluindo os de filosofia do direito. O fato é que o grande debate se origina a partir da natureza da norma que se discute: se natural, se divina, se a norma positiva. Desde os pitagóricos, e a partir de Aristóteles, a discussão se prolonga, colocando-se a justiça e o justo conforme a liberdade, a felicidade, a utilidade, a paz, etc.

Em paralelo ao julgamento do casal Nardoni, surgiu um outro elemento a exacerbar emoções e sentimentos populares: o pedido da defesa, aceito pelo juiz, de impedir a presença da mãe biológica de Isabela, Ana Carolina, durante os trabalhos do julgamento. A mãe está isolada, impossibilitada de ver e ouvir o que se fala de sua filha assassinada, de olhar os réus, de conhecer elementos de defesa e de acusação, de participar, enfim,de todo um cenário dramático no qual a dor mais dilacerante é a dela mesma, a mãe da vítima inocente e indefesa.

Especialistas em direito não negam, à defesa, o direito do pedido, acolhendo a plena legalidade da decisão do juiz. A lei, pois, permite que Ana Carolina, a mãe, fique confinada a um quarto ou sala, enquanto os acusados de matar sua filha a tudo assistem, assim como outros com interesses infinitamente menores em relação ao julgamento. É a interpretação fria da lei. No entanto, aí esbarramos num outro aspecto da fantástica elucubração humana diante do que é humano: tudo o que é legal é moral? Tudo o que é moral é legal? Não teria, assim, havido uma outra crueldade, agora com o confinamento da mãe, a segunda maior vítima de toda a revoltante tragédia, a mais sofrida sobrevivente de um drama dantesco?

Até aqui, estamos presenciando o conceito de justiça como vingança social, como reivindicação e libertação, como conceito de comportamento, de normas, etc. A frieza da lei se antepõe à paixão popular e isso é bom e saudável. No entanto, há um conceito que parece esquecido pelo mundo ocidental e que nos foi deixado exatamente por um dos principais pensadores e arquitetos da estrutura moral do Ocidente, Agostinho de Hipona. Agostinho, em sua sabedoria – que parece expandir-se quanto mais a humanidade se brutaliza – nos deixou como que uma advertência e uma lição de vida, que podem abrir caminhos para soluções mais humanas: “Que a justiça seja caridosa e que a caridade seja justa.”

Se bebêssemos dessa sabedoria, não haveria tão falsos bonzinhos no mundo e, tampouco, tantos falsos cidadãos. E, talvez, a mãe de Isabela não tivesse que passar por mais esse martírio. Bom dia.

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