Lágrima: dor ou alegria

LágrimaPor mais filosofação que faça, não encontro resposta: no ser humano, maior é a inteligência ou a estupidez? Ou são partes, ambas, do fascinante mistério da vida? Vejam, a lágrima, essa gota de alma que escapa de olhos humanos. Pois, ainda agora — no terceiro milênio da era cristã — homem que chora se transforma em notícia. Se Lula chora, a notícia é o choro; se Romário chora, suas lágrimas são a manchete. É prova de estupidez, esse espanto diante do homem que chora, como se a nobreza estivesse naqueles que contêm e controlam lágrimas, nos que ocultam emoções e sentimentos. O que há de nobre num homem que se recusa a chorar?

É conhecida a historieta do banqueiro com um olho de vidro. Não se sabia — tão iguais, na frieza e rudez — qual o de vidro e o de carne. Certa vez, ouvindo a história trágica de uma anciã , uma lágrima correu pelo olho direito do banqueiro. A mulher alegrou-se com a revelação: “O seu olho humano é o direito, o que chorou. O de vidro é o esquerdo”. O banqueiro explicou: “Não, o que chorou foi o olho de vidro, o direito”. Há olhos não merecedores da humanidade que têm.

Nada mais revelador, penso eu, do divino no humano do que a fonte de onde vertem lágrimas dos olhos. Emociona-me uma poética definição de lágrima: “Gota que morre evaporando-se, após ter dado testemunho”. Em todos as eras e em todos os povos, a lágrima é símbolo, ao mesmo tempo, da dor e da alegria, da pena e da graça, da presença da divindade no homem ou da busca dela. Lágrimas foram comparadas a pérolas ou a gotas de âmbar, chamadas de cristais, aljôfares, a suspiros de jardins, ao de profundis da alma, ao luto e à dor sem fim. Acima de tudo, porém, lágrimas são o desnudamento da alma, que rompe seus esconderijos por trás da razão humana.

Se o homem permitir lhe caia uma só lágrima dos olhos, nada mais tem a falar: a lágrima tem mais eloqüência do que as palavras. Quando se dói de sua própria dor, o ser humano derrama-se pelos olhos. Entre os rituais dos povos antigos, havia o doloroso ofertório dos astecas que, pedindo chuva a seus deuses, lhes ofertavam crianças inocentes em sacrifício. As crianças choravam e, diante das lágrimas delas, os céus choravam também. Então, chovia. Eram lágrimas do céu. Tenho certeza de já ter escrito sobre isso, ou, talvez, tenha-me tornado tão íntimo de lágrimas que falo delas como se falasse de mim mesmo.

Se não é comum ao banqueiro, chorar é o natural do ser humano, a revelação da sensibilidade represada no peito. Chora-se de alegria, de tristeza, de emoção, de felicidade, de dor. Chora-se de saudade, de lembranças, de desespero. E chora-se, também, quando se sente dolorido da própria dor. A universalidade do homem, penso eu, está na lágrima e no sorriso. Seja na China, no Iraque, na África, nos confins do mundo — todos os olhos humanos choram pela mesma dor de perdas. E os sorrisos são os mesmos diante da beleza, da inocência, de uma flor, de uma criança.

Ora, quando um homem tem a honestidade de chorar de sua dor, há que se respeitá-lo como alguém capaz de chorar dores alheias também. Pois apenas quem chora de si e por si mesmo é capaz de chorar pelo outro. Quem não se ama não ama ninguém. Quem não vive suas próprias dores não pode viver a dor alheia. Quando pais choram filhos mortos por balas perdidas, filhos assassinados, todos choramos juntos. Um povo entra em comunhão através das lágrimas, o sinal da bênção que nos torna mais humanos.

Penso nisso por, ainda outra vez, estar perplexo entre a estupidez e a inteligência humana. Certa vez, uma criancinha de dois anos foi atingida e morta por uma bala perdida. Um ministro da República chorou ao saber da tragédia. E os jornais enfatizaram muito mais as lágrimas de um homem do que a barbárie assassina. Um homem chorar, pois, é mais espetacular do que um homem matar. O espanto diante de uma lágrima masculina é maior do que a dor pelo sacrifício de uma criança.

Se retornássemos às origens dos tempos, lembraríamos que a expulsão do Paraíso começou com Apolo. Banido do Olimpo, ele derramou lágrimas de âmbar, símbolo da pureza incorruptível e intangível. Quando um homem chora, é essa lágrima que lhe cai dos olhos, a de âmbar: a nostalgia de algo que havia perdido e que recuperou. São lágrimas de esperança. Quando se chora de perda, chora-se pelo desejo do retorno. Quando se chora de dor, chora-se pela busca do alívio. A lágrima santifica os olhos. Por isso, há a palavra santa para os que vertem lágrimas: “Bendito o que chora, pois é digno dos olhos que tem”.

Soubessem disso, jornalistas não se espantariam com lágrimas de poderosos, transformando-as em notícia. Haveria o silêncio de um respeito sacramental. Lágrimas são sacramentos da alma.

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