Louis Neptune, meu mestre haitiano

O Haiti está em meu imaginário desde a adolescência, início da juventude. Eu era estudante, cursando o Colégio Dom Bosco. Foi quando, acho que em 1956 ou 1957, apareceu-nos um jovem negro, haitiano exilado no Brasil, com inteligência brilhante que pontificava na ESALQ. Pobrezinho, passando dificuldades, ele morava num dos cômodos da casa de nossos amigos, o Mathias e a Nena Vitti, na rua 15 de Novembro, quase esquina da Santa Cruz. Seu nome: Andrés Louis Neptune, que se tornaria, no Dom Bosco, nosso professor de francês e, depois, notável cientista da Agronomia.

Louis Neptune tinha um olhar profundo às coisas, olhos brilhantes que refletiam a convulsão que trazia na alma. Era, na verdade, um revolucionário por sua pátria, o Haiti, da qual ele fugira com a chegada do ditador sanguinário, o medico François Duvalier, que criara os tontos-macoutes (bichos papões) como guardas pessoais e de seu governo. Para nós, seus alunos, Louis Neptune nunca revelou amarguras e jamais fez qualquer comentário a respeito da situação política de seu país, a miséria que se acentuava, a violência que se tornara institucional. Parecia um destino: um país de história singularíssima, de heroísmo sem fim, que enfrentou o domínio espanhol e francês, depois o dos Estados Unidos, com galhardia exemplar, transformando-se, a pouco e pouco, num cenário de misérias e de degradação.

Louis Neptune, de meu professor, passou a ser um grande amigo. E se tornou um de meus mestres, transmitindo-me lições de vida que me foram extremamente úteis quando, a partir de 1964, a violência se instalou no Brasil, com o ciclo militarista. Neptune tinha paixão por sua pátria e um sentimento de compaixão e de solidariedade imenso por seu povo. Conversar com ele, passara a ser, para mim, como que um desafio para desafiar códigos de linguagem: Neptune misturava francês, espanhol, o créolle, o português, mas sua ênfase era tal que se poderia entendê-lo por gestos.

As imagens do Haiti que ele me transmitia, em longas conversas fora de aula, eram apaixonantes. Ele era profundamente orgulhoso da história de sua pátria, o Haiti que fora, por sua riqueza e brilhantismo, chamado de “A Pérola das Antilhas”. Um Haiti de povo generoso, de história heróica, de paisagens idílicas, mas de violências inenarráveis. A confusão religiosa do Haiti, que Neptune narrava com dramaticidade, era, talvez, a síntese da própria confusão histórica do povo, mas muito próxima do sincretismo religioso do brasileiro, especialmente na Bahia. Convivia, na mesma pessoa, o vodu, a macumba, o catolicismo, o kardecismo. Foi com Neptune que aprendi a entender essa proximidade de povos do Caribe com o Brasil, a paixão pela liberdade, a recusa em se deixar aprisionar mesmo submetidos à força e pela fome.

Um dia, mal fizera eu 18 anos e já me havia formado no Dom Bosco, fui chamado pela diretoria do colégio para uma reunião. Sem saber do assunto, lá cheguei e, ao lado do diretor e do que se chamava padre-prefeito, lá estava Louis Neptune, sorrindo. Ele, Neptune, deixaria de ser professor do Colégio, dedicando-se apenas à ESALQ e, para minha surpresa, me indicara para ser seu sucessor na cadeira de Francês. O que ele me ensinara queria que eu transmitisse a moços tão ou pouco mais jovens do que eu. E me revelou o que pensávamos, meus colegas e eu, fosse um segredo, uma malandragem estudantil: ele sabia que era eu quem fazia, para quase toda a classe, as redações em francês que ele nos dava como provas ou trabalhos de casa. Por obra e graça de meu mestre haitiano, tornei-me, com menos de vinte anos, aprendiz de professor de francês. Como esquecer?

Louis Neptune – pai de Nordhal e de Juçara, viúva de João Herrmann Neto – talvez não viesse a resistir às cenas e aos horrores da tragédia que destruiu o Haiti. Próximo de minha casa, há uma rua com o nome dele. Quando por ela passo, a lembrança de meu mestre se acentua. Agora, com a catástrofe haitiana, aquela rua passa a ser, para mim, como um lugar de recolhimento para se fazer pelo menos uma breve oração pelo povo haitiano. Em nome, também, de Andrés Louis Neptune. Bom dia.

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