Lula e recaída de peão

O Brasil, escolhendo Lula para presidente da República, sabia não se tratar de homem com educação formal refinada, nem com requintes de boas maneiras. Todos sabíamos das origens humildes do torneiro mecânico e sindicalista Luiz Ignácio Lula da Silva, um lutador, líder de massas, com carisma próximo do messianismo. O Brasil votou em Lula quase que como num ato de fé e de esperança, mais levado pelo coração do que pela razão. Como, no entanto, o coração tem razões que a própria razão desconhece, o coração brasileiro acertou.

As origens sociais do presidente Lula são de uma simplicidade comovedora. E, talvez, um dos grandes erros de análise em relação ao comportamento de Lula esteja nessa confusão secular que a elite econômica e cultural brasileira faz entre classe social e casta. No Brasil, desde as capitanias hereditárias, tem valido o conceito de casta, algo que não implica mérito, mas direito adquirido por nascimento. Nascer numa casta significa herdar, sem qualquer merecimento, bens e privilégios da mesma. Classe social é diferente. Ninguém pertence a uma classe social por direito, mas como um fato dinâmico, numa estrutura de desigualdades sociais que permite mobilização, mudanças, ascensão de uma classe a outra.

Lula é um dos milhões de brasileiros que ascenderam socialmente por merecimento e por haver, neste país, uma colcha de possibilidades que continua desconhecida para os que acreditam apenas em castas, como se fosse uma determinação divina. Lula se formou na escola do povo, do sofrimento, da fome. Por isso, poucos, como ele, sabem se comunicar com o povo, sentir suas emoções e transmitir as próprias. Talvez – e isso será algum dia estudado – o grande beneficio que o presidente Lula trouxe ao Brasil esteja sendo esse da pacificação das classes sociais, a diminuição do sentimento de injustiça ou de perenidade das castas. Com Lula, o povo mais necessitado encontrou refúgio, conforto, num clima de confiança recíproca e de esperança. Há um amálgama quase que carnal entre Lula e as multidões.

Ocorre, porém, que ter origens humildes, nascer em família carente e sem treino para um convívio social mais refinado não implica cultivar a vulgaridade. Os pobres, se não têm requintes culturais, transudam uma nobreza humana que se irradia através da humildade, da generosidade, desse sentimento precioso que leva o nome de solidariedade, o senso de alteridade. Pessoas humildes não são vulgares. E o presidente Lula, respondendo por todo o povo brasileiro e falando em nome de todos, não tem o direito de ser vulgar ou de proclamar vulgaridades. Ele é o Chefe da Nação, o líder do povo, o exemplo maior da nacionalidade. E, além disso, Lula é, hoje, uma referência mundial, aplaudido e reverenciado em todas as partes do mundo. Tornou-se o mais popular de todos os governantes do Planeta; foi eleito o Estadista do Ano por organismos britânicos; sua voz é ouvida e sua opinião respeitada.

O presidente Lula, falando palavrões em público, num discurso para o povo, cometeu, mais do que uma falha grave e falta de educação, um atentado contra a dignidade do cargo que ocupa. Lula, um estadista, teve uma recaída de peão. Seu linguajar pode ser apropriado para festas de peões, para jogos de truco, para brincadeiras tolas de mesas de bar. Mas não pode, em nenhum momento, ser a linguagem de um presidente da República de seu porte e de sua dimensão. Nem mesmo a sua esfarrapada desculpa, uma justificativa tola – a de que jornalistas também falam palavrões – o redimiu da falta grave. Pois é óbvio que todas as pessoas são capazes de falar palavrões e muitas delas falam. Mas não em público. E nenhuma delas é Presidente da República do Brasil. Há a dignidade do cargo. “Noblesse oblige”.

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