Mãe de leite e mentira

pictureMãe é o tesouro maior do ser humano. Imaginar um corpo gerando vida a partir de uma semente, nutrindo-a de seu próprio sangue, protegendo-a como que numa redoma por tantos meses e, depois, alimentá-la com seu próprio leite – isso é milagroso. . Ou mágica. Ou as duas coisas, mágica e milagre, confundindo-se nos mistérios da vida.

Mãe, pois, é o tesouro maior do ser humano. Mas, aqui entre nós, não deixa, também, de ser um problema. Mãe é rabicho, mãe é toda amor e toda posse, dona das pessoas, da descendência, como que senhora da vida e do mundo. Mãe é berço permanente, como se os filhos nunca se tornassem adultos e, portanto, incapazes de andar sozinhos pela vida. Mãe quer, até o fim, carregar, ninar, embalar, dar as mãos, o colo, o ombro, a própria vida. É um porto seguro mas, também, pode ser âncora e corrente.

Em suas memórias, Garcia Marques conta do tempo que levou, ao longo de sua carreira, para publicar uma das obras primas da literatura universal, “Crônica de uma morte anunciada”. Personagens e fatos pertenciam à sua pequena cidade colombiana, que se tornou a Macondo de “Cem anos de solidão”. Estava tudo lá: o enredo pronto, as intrigas, amores, desamores, cenários, atores. A mais límpida e verdadeira vida, na realidade, acontece nos pequenos lugarejos, palcos de toda a tragicomédia humana. E Garcia Marques, livro acabado, entregou-o ao editor. Mas, então, lá veio a força maior, a censura plena, a determinação ditatorial: sua mãe impediu a publicação da obra, tendo por perigoso contar os fatos, com personagens ainda e então vivos. E a humanidade, por mais de uma década, privou-se do sabor da “Crônica de uma morte anunciada”. Culpa da mãe.

Não consegui deixar de me lembrar de minha própria mãe e de rir. Pois fui enganado, chantageado emocionalmente, fiquei roído e corroído de remorsos – por culpa e responsabilidade de minha mãe. Eram tempos de grandes lutas políticas, de atritos e de combates, de polêmicas e de confrontos. Na linha de fogo dos bombardeios, estava uma das figuras mais deliciosas e controvertidas de Piracicaba, Ditinha Penezzi, a vereadora e advogada Maria Benedita Penezzi. A Dita era um doce de coco – “minha cocada preta”, eu lhe dizia – mulher adorável. Mas esperta como ela só. Seu prestígio chegava às raias do absurdo com governadores de Estado, como Adhemar de Barros, Jânio Quadros. De Ditinha no gabinete de Carvalho Pinto, a nossa Ester Silvestre da Rocha pode contar com riqueza folclórica.

Pois bem. Certa noite, minha mãe foi à redação do jornal, meu pai ao lado. Antes de prosseguir, renovo o que já escrevi: ela era uma artista, misto de Libertad Lamarque e Sarah Bernhardt, mestra em fazer dramas. E ela chegou, compungida, triste. Disse ter coisa penosa a contar: “Filho meu. Vim lhe revelar um segredo para você não cometer mais injustiças e, depois, ter remorsos. A Ditinha, que você critica, é sua mãe de leite. Eu não tinha leite, ela o amamentou. Sem a Ditinha, você teria morrido.”

Senti-me miserável, um maldito, atormentado por minha consciência, noites doídas de remorso. Procurei, então, a Ditinha, amargurado: “Perdão, minha mãe de leite.” E ela, toda gloriosa: “Está perdoado, meu filho. Mas desde que você pare de me criticar.” Passaram-se as eleições, Ditinha foi reeleita. E, então, minha mãe me contou: “Era tudo mentira. Eu tinha leite para alimentar um batalhão.”

Ela e Ditinha, amigas de infância, tinham combinado a farsa para me calar. E conseguiram. Bom dia.

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